Ainda me lembro da forte sensação de amortecimento pela qual fui banhada do topo da cabeça ao dedão do pé ao ouvir a sentença: “Você está demitida”.
Várias justificativas vieram na sequência, mas só consegui ouvir pedaços das frases, pois parecia que a voz daquele gerente saía de dentro de um latão ecoando na minha cabeça.
“Não sei bem o motivo para te demitirem, me mandaram até aqui fazer isso… Não acho justo por conta dos seus excelentes resultados… Sua equipe conseguiu excelente marketing share… Favor deixar o notebook agora comigo, não pode levar para casa para salvar suas coisas pessoais, devolva o carro da função e volte de táxi… Esses são os documentos para assinar”.
E assim, mais de quatorze anos de “vínculo” foram como que derretidos pelo fogo da indiferença e escorreram pelo ralo. O amortecimento permaneceu pelo menos por três dias, além de estar quase desidratada de tanto chorar, quando fui tomada pelo susto do toque estridente do telefone que gritava.
Ao atender o mensageiro das boas novas, que anunciava um convite de trabalho para gerenciar uma equipe em um grande laboratório multinacional, não o matei por conta da notícia, mas com lágrimas escorrendo pela face eu disse: “Agradeço pelo convite, mas agora decidi que preciso ser feliz e tomar o comando da minha vida em minhas próprias mãos”.
Acho que até hoje o nobre mensageiro não entendeu meu sinal de fumaça, mas que seja. Precisava dar um basta nessa coisa de passar pela vida sem fazer escolhas, sem me permitir olhar para a possibilidade de que havia vida fora daquele trabalho, de que meu sobrenome não era o da empresa em que trabalhava e de que eu precisava fazer alguma coisa com tudo aquilo que estava me acontecendo.
Costumo dizer que Deus sussurra em nosso ouvido o que devemos fazer. É “aquele algo me diz”, “estou sentindo que”, que outros chamam de intuição. O fato é que, quando não acatamos esse chamado, o universo, ou seu chefe que seja, se encarrega de vomitar na sua cara a dura realidade de decidir por você.
É quase uma traição. Eu que queria ter dado a contas para aquela empresa, queria ter dito o que pensava, queria tanta coisa. No entanto, muito além do querer, eu estava amarrada pelo medo de não ganhar dinheiro o suficiente em outro ramo, com preguiça de ter de começar do zero em outro lugar, incerta se era boa o suficiente para me aventurar em novas possibilidades.
E de medo em medo, o amortecimento tornou-se crônico, a ponto de não mais percebê-lo. Audição seletiva, pensamento obtuso, ideias cerceadas, qualquer brotinho de ideia ou mudança que aparecesse eu rapidamente podava com minha tesoura do conformismo, então, mesmo tendo potencial para ser uma sequoia gigante, eu não passava de um bonsai desmilinguido.
O amortecimento tinha se espalhado para outras áreas da minha vida, e “amortecida sênior” que eu era, não percebia.
O fato é que o chute no traseiro que a vida me deu me despertou para a possibilidade de, dessa vez, fazer tudo diferente. A anestesia passou, mas eu estava tão acostumada a vestir-me dela que, quando se foi, senti-me desnuda. Sensação estranha essa a de não estar anestesiada, o que faço com isso?
Revesti-me da coragem, minha nova roupagem, modelito sob medida para o momento. Coragem para entender quem eu era de fato, o que desejava para minha vida, coragem para expor e aceitar minha vulnerabilidade, admitir que era imperfeita sim e aí, coragem para fazer do meu jeito e provar para mim mesma que funcionava.
Coragem para cair e levantar, para podar as ervas daninhas que insistiam em tolher meu crescimento, coragem para quebrar aquele pequeno recipiente que me envolvia e deixar minhas raízes livres para crescerem estruturadas, com força e vigor.
Percebi que o céu é o limite, a força veio, a coragem me inundou e os frutos apareceram. Amortecimento agora só quando saio do dentista com aquela leve sensação de formiguinhas mordendo minha boca.
*Essa crônica é do meu livro “Vou Ali e Já Volto – 40 Anos no Deserto”.
Fotografia da arte de Ivan Beoulve