O país entra em 2021 um pouco menos subdesenvolvido ao reconhecer direitos às mulheres sobre seu próprio corpo.
Canadá, Estados Unidos, Cuba, Uruguai e Guiana (a antiga Guiana Inglesa) eram até dias atrás os únicos países do continente onde o aborto está legalizado. Além deles, dois enclaves da Europa na região, a Guiana Francesa e as Ilhas Malvinas. Quase toda a Europa conta com legislação equivalente, bem como parte do extremo oriente. Mas, menos de 48 horas antes de encerrar 2020, o Senado argentino colaborou para colocar a Argentina em sincronia com o século XXI (e com quase todos os países desenvolvidos), ao aprovar a lei de interrupção voluntária da gravidez.
Desta forma, a Argentina sai do “clube” de países onde sua realização voluntária é proibida, entre eles o Congo, o Afeganistão, a Nicarágua, El Salvador, Venezuela, Bolívia e Burundi (além do Brasil).
Um dado muito ilustrativo sobre a mentalidade masculina em relação à legalização é o fato de que mais da metade dos senadores argentinos homens votaram contra. Mas as mulheres votaram em peso a favor: 68% deram o “sim” à legalização.
A aprovação é mais um capítulo e uma luta iniciada em 2015 com as marchas “nem uma a menos”, denominação das manifestações para protestar contra o crescimento dos feminicídios no país. Este slogan surgiu quando Chiara Pérez, de 14 anos, foi assassinada pelo namorado e enterrada viva no quintal da casa. No entanto, este slogan adquiriu relevância regional um ano depois quando um grupo de homens estuprou e empalou Lucía Pérez, de 16 anos, jogando seu corpo na calçada de um hospital. As marchas de protesto ampliaram-se mais além das fronteiras da Argentina.
Nesta meia década houve um substancial crescimento dos protestos nas ruas das cidades argentinas contra os abusos sexuais feitos às mulheres, o aumento dos feminicídios e discussões sobre a paridade de gênero.
Em 2018 o então presidente Maurício Macri (2015-2019), de centro-direita, abriu pela primeira vez na História o debate sobre o aborto no Parlamento argentino. Na época o projeto foi aprovado na Câmara com respaldo governista e opositor, mas foi derrubado no Senado. Em 2019 o então candidato presidencial Alberto Fernández prometeu durante a campanha eleitoral que encaminharia um projeto de lei ao Parlamento sobre o assunto.
Mas agora, em dezembro, o projeto foi novamente aprovado na Câmara de Deputados. No Senado esperava-se um virtual empate. Mas o resultado chamou a atenção: 38 senadores votaram a favor. 29 parlamentares votaram contra. Um senador se absteve.
Setores do governo e da oposição colaboraram (algo raríssimo na História argentina), dividindo tarefas para convencer os indecisos. Por esse motivo trata-se de uma vitória conjunta do governo e da oposição.
Para atrair parlamentares que estavam indecisos o projeto passou por algumas modificações: em vez um prazo de 4 dias desde o pedido para um aborto até sua realização em um hospital, foi aumentado para 10 dias. Outra modificação: o projeto original impedia a objeção de consciência institucional. Mas agora fica autorizado. Desta forma um hospital particular pode recusar a realização de um aborto. Mas as autoridades dessa instituição deverão recomendar um hospital onde essa pessoa poderá realizar o aborto.
Mas outros senadores não foram convencidos por seus colegas parlamentares, mas sim por seus filhos e netos, que lhes pediam que deixassem atrás posturas conservadoras no que concernia ao aborto.
No entanto, os aliados da legalização do aborto confrontarem-se com um persistente e internacionalmente poderoso opositor desse direito das mulheres, o argentino papa Francisco.
O pontífice telefonou a vários parlamentares nos dias anteriores às respectivas votações na Câmara e no Senado para pressionar pela derrubada do projeto de lei. Ele já havia feito isso em 2018 e o voltou a fazer.
Nas manifestações feitas contra o projeto de lei na frente do prédio do Parlamento em Buenos Aires padres fizeram missas, organizaram confessionários improvisados e protagonizaram sermões alegando que o presidente Fernández era “Satanás” (tal como haviam feiro dois anos antes contra o então presidente Macri).
Mas a lei foi aprovada. E isso constitui uma derrota para o papa. Ele perdeu em sua própria terra natal, onde possui grande influência política (mas não influência religiosa).
Na Argentina, onde não existe uma “bancada religiosa” no Parlamento, a postura dos partidos costuma ser de defesa do Estado laico. Por isso, os analistas destacam que a aprovação da legalização constituiu uma demarcação de território por parte dos partidos políticos argentinos (governistas e opositores) perante as tentativas de diversas igrejas de interferir com a sociedade civil.
Nos últimos anos a América Latina teve casos emblemáticos do Terror padecido por mulheres em países da região onde existem draconianas legislações contra o aborto.
1 – O caso de Imelda Cortez, em El Salvador:
Imelda foi estuprada sistematicamente durante 7 anos por seu padrasto, Pablo Henríquez. Mas isto não foi levado em conta pelas autoridades salvadorenhas que haviam ordenado sua detenção original. Elas tampouco haviam levado em conta que Imelda não sabia que estava grávida. Parece estranho? Nem tanto. Ela era uma adolescente criada sem informação sexual, e seu violador agravava a situação dizendo-lhe que ela não podia ter filhos.
Neste contexto, no dia 17 de abril de 2017 Imelda, com 17 anos, foi até a latrina de seu casebre na cidade de Jiquilisco, na área rural de Usulutlán. E ali deu a luz, sem entender o que estava acontecendo. O bebê caiu na latrina. Por isso foi acusada de homicídio.
A Procuradoria exigiu sua condenação a 20 anos de prisão. Mas o assunto gerou polêmica internacional. E, devido às pressões do resto do mundo, Imelda conseguiu a liberdade. E essa foi a primeira vez que ela sentiu liberdade em 8 anos, já que ela havia sido violada com frequência pelo padrasto dos 11 aos 18 anos e depois foi presa.
2 – O caso de Rosaura Almonte, na República Dominicana:
Em 2012 médicos nessa ilha caribenha diagnosticaram que Rosaura Almonte, de 16 anos, tinha leucemia. No entanto, se negaram a realizar um tratamento contra o câncer alegando que os medicamentos colocariam em risco a vida do feto, que tinha 7 semanas de gestação. O resultado dessa foi o falecimento de Rosaura e do feto.
3 – No Peru, o caso de K.L:
Em 2001 a adolescente que durante anos foi publicamente conhecida pelas siglas K.L, que tinha 14 semanas de gravidez foi informada pelos médicos de que o feto tinha anencefalia. Ele expressou seu desejo de abortar. No entanto, seu pedido foi rejeitado pelas autoridades.
K.L. teve que continuar com essa gravidez. Nos seguintes quatro dias ao parto foi forçada a amamentar o bebê.
O Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU indicou que a decisão teve graves consequências mentais e físicas para a adolescente.
O Alto Comissariado recomendou ao Estado peruano o fornecimento de uma indenização a K.L. e sustentou que o Peru violou os direitos da vítima.
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos determina o direito à indenização efetiva, a proibição de tortura a uma mulher e o tratamento cruel, desumano e degradante, além do direito à vida privada e o direito às medidas de proteção a uma menor de idade como ela.
Só uma década após o parto é que Noela Llantoy (seu verdadeiro nome) recebeu uma indenização do Estado peruano.
O Peru contava com uma lei de aborto terapêutico, aprovada em 1924. No entanto, ela não foi regulamentada até 2014, isto é, 90 anos depois