O que te move? O que te inquieta? O que te convoca para vida? O que instala a urgência da ação em você? Eu descobri o que me move no dia em que tudo parou. 

Minha filha Alice, que havia nascido prematura, estava internada há mais ou menos um mês em uma UTI neonatal, teve uma parada cardiorrespiratória que durou 26 minutos. Naquele momento tudo parou. Tudo suspenso. Só uma urgência gritava dentro de mim: a urgência da vida.

Aquela parada se tornou um diagnóstico de paralisia. Paralisia cerebral. Os médicos nos diziam de muitas impossibilidades. Não falar, não se sentar, não andar. Alice não teria uma vida independente. E para cada anúncio do que não aconteceria, nos diziam da necessidade de buscarmos recursos.

Devemos oferecer medicamentos, terapias, tratamentos, tudo que desse ao seu cérebro a oportunidade de se reconfigurar naquilo que é conhecido como plasticidade cerebral. Foi isso que fizemos. O primeiro ano da Alice foi uma corrida insana em torno de tratamentos.

Pesquisávamos todas as notícias em busca de qualquer possibilidade que pudesse curá-la ou melhorar a sua condição enquanto ela cumpria uma agenda pesada de terapias. Muitas vezes ela fazia sessões dormindo porque ainda era um bebê e tomava fortes medicações para convulsão. 

Aqui é aquele momento que você espera que eu diga que todo esse esforço valeu a pena e que a Alice hoje é uma criança linda, tagarela e que corre pra todo lado. Porque é isso que se espera de uma pessoa com deficiência: que ela supere a sua condição. 

Mas a nossa realidade é outra e o que eu acredito que tem que ser superado também. Alice continua sem se sentar, sem falar, sem andar, sem fazer nenhuma atividade com autonomia e eu também não sei se um dia ela fará essas coisas. Isso deixou de ser importante, diz pouco sobre ela. Minha filha é sim uma criança linda e também valente, corajosa, bem-humorada, que tem amigos, que adora ouvir música e que até rebola na cadeira de rodas. É uma criança.  E toda essa alegria e a possibilidade de ser quem ela é também foi uma conquista.

O que tem que ser superado não está na Alice, não está na deficiência. O que tem que ser superado não está em nenhuma característica do nosso corpo. A deficiência é parte da experiência humana. Não tem que ser eliminada e também não pressupõe sofrimento. O que tem que ser superado está nas nossas relações com o outro, com o mundo. O que tem que ser consertado são os lugares sem acessibilidade, as tecnologias que não estão a serviço de todas as pessoas, o currículo escolar que não valoriza o que cada aluno é.

As coisas é que deveriam se ajustar às pessoas e não o contrário. Passar a vida acreditando que para ser feliz, para ter respeito é preciso andar, falar, ter o corpo dentro de uma determinada norma, é uma violência. Violência, não há outro nome para isso. Gente não tem padrão. Gente é única, singular, inexata, inacabada. Gente é uma delícia porque é justamente assim: mistério e descoberta.

Nossa urgência no mundo deveria ser criar condições para que todos possamos ser quem somos, autênticos. O problema é que muitas vezes somos pressionados a seguir padrões. Padrões que nos fazem sangrar. É preciso dedicar tempo às reflexões necessárias. Que padrões são esses?  A quem eles servem? Em que medida o que querem enquadrar, ajustar, altera quem eu sou? Há inúmeras nuances entre buscar recursos que contribuam para qualidade de vida e tentar se enquadrar em um padrão para ser feliz, para ter acesso a oportunidades e, em última instância para ter direito à vida.

Compreender isso é conhecer as engrenagens que nos oprimem. O direito de ser diferente é uma conquista diária. É preciso desafiar esses padrões que insistem em nos reduzir, que maltratam, que sufocam a vida e que fazem com que uma meia dúzia de pessoas lucrem com isso.

A experiência humana é sobre pertencer, não sobre caber. E antes que se possa pertencer a um mundo, é preciso que se possa pertencer ao próprio corpo. Através dele, celebrar as diferenças, experimentar outros caminhos de alteridade, de respeito, de criatividade, de afeto, de paz. Quando as diferenças que nos distinguem, que nos fazem únicos resultam em desvantagem, há sim um adoecimento a ser curado – o da nossa consciência, o da cultura e do sistema em que estamos inseridos. É preciso curar o preconceito. É o preconceito que limita, que afasta, que julga, que fere, que silencia, que mata. O preconceito é feito água parada, inerte, ocioso, lugar propício ao indesejável e ferramenta indispensável de perpetuação de injustiça. 

O preconceito nos autoriza a hierarquizar as vidas. Essa está dentro dos padrões, essa precisa ser consertada, essa é descartável. Foi ele, o preconceito, que me levou pelos primeiros caminhos em torno da minha filha Alice. E é interessante porque o preconceito é um sentimento tão ardiloso, tão persistente que não se incomodou de andar de mãos dadas com aquilo que é o meu maior amor. Muitas vezes eu achei que estava demonstrando afeto, mas estava resvalando preconceito ou capacitismo, que é o preconceito com relação às pessoas com deficiência.  Foram esses os caminhos que eu percorri nos primeiros momentos da minha filha Alice. 

O que move a vida é a diversidade. É ela que nos coloca em movimento, que interdita o caminho do óbvio e que nos atira às descobertas. É ela que nos apresenta novas perspectivas, diferentes maneiras de ser e estar no mundo. Ora não somos gregários, nós precisamos do outro para evoluir, precisamos de cada um. Pra nossa sorte, a diversidade é a matriz da nossa existência.

Na natureza, a diversidade produz inúmeros ajustes entre plantas, animais, planetas, universos. Na humanidade, abre espaço para infinitos arranjos de existir e de experimentar felicidade. Compreender isso é afastar a ideia do ser humano como uma categoria, uma coisa e entendê-lo como um ato contínuo, uma ponte. Passei a pensar grande e fiz da escrita uma aliada importante nesse processo de assumir a urgência e a responsabilidade de participar do mundo. Foi assim que nasceu o Diário da Mãe da Alice.

Para mim, ainda não inventaram armas mais poderosas do que as palavras. E é por isso que eu escrevo. Palavra que principia a ação. Escrevo, escrevo e vivo. Faço do encontro com cada pessoa uma oportunidade de ventilar outro mundo possível. Pode ser com uma pessoa, com dezenas, com centenas delas, não importa.

Fazer a inclusão acontecer é muito mais do que garantir elevadores, rampas, braile, libras. Cada um desses recursos partiu de uma intenção e aí é preciso perguntar o que move um prefeito a construir um parquinho acessível em sua cidade?  O que move um arquiteto a projetar um espaço em que todos tenham lugar? O que move um motorista de ônibus a facilitar o embarque e o desembarque de todos os passageiros? O que faz com que um cidadão queira conviver com outro? De outro modo, o que faz com que a falta de acessibilidade ainda seja algo tão aceitável? E uma cadeira de rodas produza tanto estranhamento.

Fazer a inclusão acontecer é rever conceitos, educar consciência, transformar atitudes. É muito mais do que fazer o que é certo e garantir direitos. É ressoar a diversidade humana como a nossa maior riqueza e a inclusão como uma necessidade comum, de todos nós, sempre. Deixemos que a diversidade seja a nossa professora. Não podemos privar as pessoas de uma convivência inclusiva e acolhedora da experiência humana. É nisso que eu acredito.

O que move a vida é a diversidade, o que nos tira do lugar comum, o que nos apresenta possibilidades. O mundo não é de uma minoria branca, heterossexual, masculina, sem deficiência. Há muito, muito mais que nos escapa. Nós somos mais de sete bilhões de pessoas no mundo e não há ninguém igual a ninguém. Deixemos que a diversidade oxigene nossas afirmativas, apresente novas perspectivas, concilie com o que há de melhor em nós. Que ela seja como chuva fina na água parada do preconceito. A gente vai se permitindo acessar a história do outro, o jeito de ser, aquilo que parece esquisito e com isso vai ampliando repertório para entender o outro e a si mesmo. 

É que a vida é feito o rio: fluidez e atrevimento. E tentar conter o rio, pura estrutura de paradigmas e preconceitos, é conter uma energia colossal de possibilidades que nos atravessam por todos os lados, por todos os poros, todos os dias.

O convite é para abrir o peito, deixar arejar, para que a humanidade tenha espaço aqui dentro pelo afeto e lá fora pela sua atitude. Esteja atento e disposto a esse movimento. Faça esse movimento. Seja esse movimento. 

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