Em meio a esse clima pandêmico, repleto de almas cansadas pelo turbilhão de informações trágicas, tento – à minha maneira – cultivar as boas lembranças para que, inesperadamente, me sirvam de alento. São muitas as recordações, e, ainda que múltiplas e dispersas, seguem inteiras; como que guardadas no meu bolso. Por meio do poder catártico das palavras, quando as necessito, retiro-as cuidadosamente para que não esqueça de contemplá-las. Há pouco fechei os olhos e as arranquei, regressando à Lisboa que vivi durante três anos.

Retorno (em imaginação) à capital portuguesa, mas sem sobressaltos ou máscaras em pleno mês de março de 2019. No intermédio daquelas tardes demoradas, já na saída do metrô que dá acesso à praça Marquês de Pombal, o clima de primavera se consolida entre os transeuntes e as inúmeras bancas de flores espalhadas nos cantos das ruas. Entre crisântemos e rosas vermelhas vendidas a 2 euros, a paisagem indica que o dia era dedicado a nós, mulheres. Naquele instante, sinto que pertenço a algo importante, e, em um breve e solitário caminhar, percebo o sentimento de alegria de quem, surpreendentemente como mulher, vê reconhecido no espaço público um gesto que, em celebração, jamais vira ao longo da vida.

Naquele mesmo mês, havia planejado participar da Rota Feminista de Lisboa e, sem saber ao certo o que realmente iria acontecer, fui fisgada pela ideia de uma visita guiada para se repensar as ruas, avenidas, parques, assim como as lutas e conquistas das mulheres na cidade de Lisboa, no que me pareceu uma excelente programação de sábado. O clima parecia indeciso, ora chovia, ora o sol tisnava na quentura, mas não desisti, esperando assim as demais mulheres no local combinado.

Aos poucos, brasileiras e portuguesas de diferentes faixas etárias e tão curiosas quanto eu, chegavam para dar início àquela rota. Estávamos no Parque Eduardo VII, aos pés da estátua do Cutileiro (basta um google para ver o quão fálico é o monumento), e então a guia nos apresentou uma fotografia em preto e branco com mulheres segurando um grande cartaz. Apoiando a foto impressa em uma mão, ela apontava para aquele local, em cujo dia 13 de janeiro de 1975, ocorreu a primeira manifestação feminista na cidade.

Quase, ao mesmo tempo, procuramos algum monumento ou placa referente àquela data tão especial. Curiosidades e expectativas à parte, não havia vestígios. Entendi naquele momento, quase que subitamente, que estávamos desbravando um mapa do esquecimento: mulheres (ainda que esperançosas) à procura da exaltação dos feitos femininos memoráveis. Em suas ausências marmóreas; incrustadas nas pedras de alguma estátua eventual, pensei: Nós, mulheres, jamais fizemos algo que valesse a solenidade pública de um monumento?

Sob um sol que se fazia ainda mais presente, descemos as inúmeras ruas, praças, avenidas e, a cada passo, uma memória ligeiramente pomposa e masculina (à altura expressiva da atenção urbana) era resgatada através de histórias e registros fotográficos que alimentavam nossas imaginações. Até que chegamos na praça de Lisboa que citara no começo (a Marquês de Pombal) e lá, além de nos ter apresentado a inúmeras mulheres importantes da história da cidade (sem vê-las materialmente em uma placa qualquer), um fato curioso foi revelado pela guia: as toponímias não possuem registros expressivos de nomes femininos.

Existindo para a vida privada; dos afazeres domésticos, as mulheres (de um passado nem tão distante) precisavam ser recatadas demais para a labuta diária de seus ofícios; esquecidas até entre as toponímias.

Avanço alguns passos, e em meu retorno para casa, começo a refletir: Quantas vezes, nós mulheres, já paramos para pensar nos nomes das ruas? Será que fomos tão inviabilizadas que nem mesmo isso nos damos conta? O que existe, secundariamente, por detrás daquela placa de ferro esmaltada que, em algum esquina, nomeia a curiosidade dos que passam?

Até aquele momento, não havia sequer me incomodado, afinal apenas respondia mecanicamente à necessidade urbana dos logradouros em Lisboa. No entanto, e a bem da verdade, há mais muitos poderes sob as placas aparentemente banais de uma cidade; poderes não necessariamente institucionais; poderes domésticos, por vezes.

Apesar desses poderes, atuantes desde as estátuas até as toponímias, cada inscrição; cada nome possibilita guardar e reavivar a memória, afastando assim a possibilidade do esquecimento que, em uma escala simbólica, representa a própria morte de uma cidade. Como a memória é o esforço prestado à própria história e aos caminhos a seguir ou a evitar, o aparentemente isonômico espaço urbano também pode ser um palco em que se multiplicam esquecimentos, cuja consequência é da ordem da falsificação, da mentira e da importação de modelos e padrões de referência que, apesar de presentes na própria cidade, são resgatados nos rincões mais distantes.

A marca dessa invisibilidade feminina, que faz com que homens (no mais das vezes) historicamente coadjuvantes ganhem visibilidade histórica, advém do tempo em que as mulheres eram relegadas ao espaço doméstico, circunstância em que extrapolar o lar (em qualquer esforço profissional, intelectual ou pessoal) era passível da adjetivação mais pecaminosa: pública!

Um exemplo significativo do quanto a memória das cidades esconde a disparidade simbólica dessa queda de braços entre homens e mulheres está no artigo de 2018 do Jornal Público de Lisboa, cujo alerta se dá nessa evidência estatística: apenas 15% das ruas portuguesas contemplam nomes de mulheres.

Aqui, no Brasil, também não é muito diferente, haja vista o fato de que – por exemplo, na cidade de São Paulo, com suas 45.717 vias – o percentual demonstra que 83,75% das ruas foram batizadas com nomes masculinos e 16,25% com nomes femininos, mas com a seguinte particularidade: nomes institucionalmente católicos, ou seja, relacionados às Santas e Madres, de modo que, em termos laicos ou meramente civis, tais nomes somem ou desaparecem.

Isso prova que, mesmo com as mudanças nesse cenário de subjugação e consequente renovação das mentalidades, a exigência anterior ainda permanece, qual seja: suprimido o nome de mulheres que, em termos cívicos, deram seus contributos como mães, esposas, professoras, médicas, advogadas, musicistas, intelectuais e artistas.

Enquanto escrevo isso, a memória recua para a atualidade e se entristece pela certeza de que as flores da Praça Marquês de Pombal não homenagearão as mulheres no dia 8 de março, dadas as restrições em tempos de pandemia. Mas, apesar disso, a placa do esquecimento permanece no exato lugar que a deixei, sutil e encantadora como o nome das mulheres que não estão lá. A depender da perspectiva, placa também pode ser o espelho que se vê um lugar.

Foto: Joan Colom

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8 comentários
  1. Claudia,
    Em primeiro lugr esse passeio por Lisboa. Ah, ams que divino deve ter sido. Fiquei com vontade de fazê-lo também!
    Gostei muito também d tua provocação. Nunca tinha parado para analisar que até nos nomes dos logradouros nos fizeram invisíveis, que loucura.
    Adorei teu texto e essa provocação reflexiva que me trouxe.
    Um beijo, Renata

    1. Olá, Renata! Tudo bem?
      Tenho muitas boas lembranças desse passeio e segue como dica também: os passeios são organizados pela associação mulheres sem fronteiras (lisboa). Eles tem facebook e um monte de outras informações interessantes. Quando você fizer esse passeio, depois me fala o que achou…Tenho certeza que vais gostar!
      Então, fui provocada e, agora, estou repassando essa provocação… É Incrível e devastador saber que somos invisíveis também no espaço público.
      Fico feliz que tenha gostado do texto e, o mais importante, que a minha escrita tenha suscitado reflexões.
      Obrigada!!
      beijo,
      Glaucia

    1. Olá, Susanne!
      Muito obrigada! eu também acompanho seus textos que, por sinal, são muito bem escritos ( já pensaste em escrever um romance?). De fato, esse tema levanta questões tão necessárias e, além disso, mais uma vez constatamos o quanto somos preteridas nos assuntos públicos (seja no âmbito do poder, seja na paisagem urbana).
      Preazer tê-la por aqui!

      Beijo!

    1. Que alegria, Claudia! Fico muito feliz que tenha gostado do texto. O tema da invisibilidade das mulheres no espaço público é de extrema importÂncia e, cada vez mais, tenho me interessado por essa temática.
      Obrigada pelo feedback!
      Beijo

        1. Lívia, querida!
          Muito obrigada por esse comentário tão generoso. Meu coração fica alegre quando leio algo assim. Adorei o termo “recorte cinematográfico” e, de fato, é como se fosse uma extensão daquelas postagens.
          Um grande abraço!

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