Estamos em pleno século XXI. Aliás, já consumimos 21% desta centúria. Mas mesmo assim, volta e meia – quando falo sobre os feminicídios – vários gajos (em mode medieval) alegam que, se assassinato de mulher é “feminicídio”, assassinato de homem teria que ser “homEnicídio”. Bom, uma mulher morta por um ladrão em um assalto de banco, não é feminicídio… É assassinato mesmo. Feminicídio é o assassinato agravado de uma mulher por questões de gênero, por ódio às mulheres, por homens que as consideram inferiores e sem direitos, por considerar que são suas propriedades (e porque os caras acham que podem fazer o que quiserem com elas).

Vamos imaginar um diálogo. “UHMD” será a abreviação de “Ultra-hiper-mega-dummie”.

UHMD: Mas tem muita mulher que assassina os maridos….

ARIEL: Sim… Mas são minorias. Obviamente, o volume de mulheres assassinadas por esposos, namorados, ex-namorados e vizinhos é colossalmente maior do que o volume de homens assassinados por suas esposas, namoradas, ex-namoradas e vizinhas.

UHMD: Mas, pra quê criar um termo tão específico? Precisa dessa dificuldade?

R: Sim, o assunto merece uma denominação específica. Exemplo: O assassinato de filatelistas por questões filatélicas é baixo. Mas, se o assassinato de filatelistas fosse enorme, aí seria necessário criar um termo para isso. No entanto, não é necessário porque esse tipo de crimes é de baixa magnitude. Mas os feminicídios ocorrem há milênios em grande escala. E embora estejamos no século 21, continuam ocorrendo. Aliás, no ano passado, durante a pandemia, aumentou o número de feminicídios na América Latina.

UHMD: Ah, mas é um neologismo desnecessário… Tem que falar simples, sô!

R: Não. Ao contrário do que muitos ignaros alegam, o termo feminicídio não é um “neologismo” ou uma “novidade” ou um “modismo”. O termo feminicídio foi usado pela 1ª vez em 1976 (há 45 anos) no Tribunal sobre Crimes contra a Mulher em Bruxelas. Se for para evitar neologismos, ninguém poderia usar o termo “wifi”, que é tremendamente mais novo. Nem usariam “crowdfunding” ou “vídeo game”…sequer “selfie”, todas palavras muito mais novas do que “feminicídio”! E se existe um termo, é porque ele trata de algo específico. Exemplo: dentro do Universo dos talheres existem facas, colheres, garfos, facas para peixe, facas para queijo, colheres de sopa, de chá. de café, de molhos, etc. E cada um tem um nome diferente porque possuem funções, usos em formas diferentes. Nos assassinatos ocorre a mesma coisa: existe o homicídio doloso ou sem dolo…existem casos de maior gravidade, como o “parricídio” (quando um filho assassina um pai ou mãe). Ou, “infanticídio” para o caso do assassinato de crianças por parte de seus pais. E também existe o “magnicídio”, quando uma pessoa assassina um chefe de Estado, já que isso tem grandes implicâncias políticos ou sociais. Ou “regicídio” se for para o caso de um chefe de Estado que seja rei ou rainha assassinado. E existe outro caso, o “suicídio”, que é o assassinato de si próprio. Além disso, o termo é necessáro porque o idioma precisa de rigor e existem termos adequados para os diversos casos. Essa é a riqueza do idioma.

PANDEMIA

Com a pandemia o volume de feminicídios e a violência contra as mulheres cresceu de forma exponencial. Os homens, confinados em suas casas, desataram um comportamento mais violento que o costumeiro. A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, a CEPAL, denominou a onda de violência contra as mulheres durante a expansão da covid-19 de “a pandemia paralela”.

Em abril, com pouco mais de um mês de pandemia em território mexicano, a Rede Nacional de Refúgios do México alertava para um aumento de 60% nas denúncias feitas por mulheres sobre violência de gênero. No Uruguai as autoridades verificaram um crescimento de 80%. No Chile, 70%.

Os feminicidas mexicanos matam em média 10 mulheres por dia. E além disso, outras 26 mulheres (parte das quais menores) desaparecem sem deixar rastros.

Na Colômbia, durante o pandêmico 2020, o volume de feminicídios cresceu 9% em comparação com o ano prévio.

NEM UMA A MENOS

As marchas de protesto contra os feminicídios na Argentina começaram a ter o slogan “nem uma a menos” em 2015. O estopim para as manifestações foi o feminicídio de Chiara Páez. Ela tinha 14 anos e foi assassinada por seu namorado, que a enterrou viva no quintal da casa de seus avós porque ela estava grávida.

Em 2016 as manifestações se intensificaram depois que Lucila Pérez, de 16 anos, foi estuprada e empalada com um pedaço de madeira por três homens na cidade Mar del Plata. Eles jogaram seu corpo na calçada de um hospital.

O modus operandi dos feminicidas (maridos, ex-maridos, namorados, ex-namorados, além de vizinhos, colegas de trabalho e até desconhecidos) abrange armas de fogo, espancamentos e enforcamentos. E nos últimos anos, desde que um cantor de rock matou sua mulher queimada viva houve uma onda de feminicídios por fogo.

No México, nos últimos 5 anos, dos vários milhares de mulheres assassinadas por cônjuges, mais de 60 foram decapitadas. No Peru, 7 de cada 10 mulheres já foram vítimas de agressões de seus namorados, maridos ou ex-maridos.

O nome deste protesto, o “Nem uma a menos”, vem da poetisa mexicana Susana Chávez, que dizia “nem uma a menos, nem uma morta a mais”. Ela própria foi assassinada em seu país.

Outra data importante é o Dia Internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres, 25 de novembro.

A data tem uma origem latino-americana (e que posteriormente virou filme com Salma Hayek e o livro “A festa do bode” de Vargas Llosa): em 1949 o sanguinário e pervertido ditador Rafael Trujillo, que comandava República Dominicana com mão de ferro conheceu a jovem Minerva Mirabal, filha de latifundiários, que haviam criado suas filhas como mulheres independentes e cultas.

O ditador ficou obcecado por Minerva, No entanto, a jovem (junto com sua família) rejeitava Trujillo.

Trujillo iniciou uma perseguição política e policial contra toda a família. Mas, especialmente contra Minerva e suas irmãs Patria, Maria Tereza e Adela, que haviam começado a ter ações políticas contra o ditador.

As irmãs Mirabal foram presas, acusadas de conspirar contra o regime. Torturadas e estupradas, foram posteriormente liberadas. Mas, era apenas uma manobra de distração com a opinião pública, que começou a ficar indignada com o tratamento às jovens.

Tempos depois, Trujillo ordenou que elas fossem assassinadas com uma operação clássica do regime para eliminar adversários: “o acidente de estrada”. Isto é, o carro com o opositor desgovernava-se e colidia contra algum lugar (outro formato era jogá-los ao mar em setores nos quais abundavam tubarões).

No 25 de novembro de 1960, Maria, Minerva e Maria Tereza iam em um jipe com seu motorista, quando foram detidas por homens de Trujillo, que as mataram com golpes de peixeiras. Na sequência, colocaram os corpos dentro do veículo e empurraram o jipe com elas por um precipício.

E por isso, o dia 25 de novembro, dia da morte das irmãs Mirabal – apelidadas de “As Borboletas” – transformou-se, em 1999, no “Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres”.

Ilustração: Tyler Spangler

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