Eu já tinha esquecido que para conseguir atravessar o tempo e envelhecer, um pré-requisito é mandatório: sobreviver às perdas do caminho. Ser capaz de seguir viagem carregando na mesma bagagem o otimismo dos dias felizes e as feridas implacáveis da vida. Nunca será fácil. Cair e levantar, tropeçar e continuar caminhando, procurar ser forte, se agarrando na esperança de poder quem sabe voltar um dia à tona. É essa a sensação da dor. O luto é um afogamento. Ele te aprisiona submersa sem ar.
Nos últimos dois anos, encantada com o florescer da minha maturidade – a descoberta da plenitude da minha autoestima e sexualidade, a reinvenção do meu rumo, novas perspectivas, a clareza sobre a pouca importância da opinião alheia -, ignorei a proximidade dessa outra realidade particular do nosso terceiro ato (apesar de ter escrito instintivamente nessa mesma época o texto “Orfã”). Seria absurdo demais imaginar que o inevitável me alcançaria tão alto, a crueldade do timing desse atropelamento. Mas aconteceu. Afirmando a efemeridade da nossa existência, a finitude do corpo, mais poderosa do que a imortalidade das suas intenções.
Não somos responsáveis pelo roteiro dos nossos papéis aqui na Terra. Ninguém é. Talvez nem mesmo donos do livre arbítrio que tanto nos conforta e legitima as nossas desculpas. O bom e o ruim são distribuídos aleatoriamente nesse contrato que não assinamos, parte da condição humana, inflexíveis. Poeira no vento, é o que somos. Deliciosamente poéticos, mas insignificantes. E o que fazemos com esse entendimento -ah, isso sim- é a grande virada do jogo da vida. Saber aceitar e deixar partir, e saber morrer. Porque não fomos educados para conversar com o fim, conviver com a sua presença, convidá-lo para um café, tornar familiar a única certeza que temos desde que nascemos. A morte ainda é um tabu por aqui. Também para mim, que fugi e tentei lutar contra ela.
Transcender o luto dos pais (particularmente de uma grande mãe) me exigiu um novo tipo de coragem, aquela, para a qual nunca fomos preparados. Arrancá-la desse lugar profundo, visceral, primitivo, para que eu levantasse os meus próprios alicerces, me esgotou. Eu recomeço a partir de um desmonte. Do que restou fisicamente da existência do meu amor – e a constatação de que ali restaram os anéis e não os dedos, os livros, os móveis, a louça, as roupas, o cheiro – e da pessoa que eu costumava ser até essa perda. Ver perdidos com eles as suas ideias, opiniões, o exemplo, a fonte acessível de conhecimento da qual bebi durante esses longos anos. A injustiça que deles tenha sobrado apenas “eu”. A partir daí. Parida para uma outra vida à forceps.
Enquanto separo cuidadosamente os pertences do quarto, vejo na mesinha de cabeceira ao lado da cama um livro mal apoiado por cima de dois bloquinhos de anotações e o caderno de telefones que ela dizia manter por minha causa, para que eu não me perdesse quando precisasse futuramente dos seus contatos: “A Ilha do Conhecimento”, de Marcelo Gleiser, à espera dela para ser terminado, tristonho. Somos dois. E dentro dele, parada na página 86, uma lixa de unha amarela, marcando essas últimas linhas lidas, amassando a folha. Algumas frases estão sublinhadas a lápis. Meu coração aperta.
“Enquanto aumentava o conhecimento acumulado…”, “a percepção da nossa ignorância…”, o traçado torto, é ela, minha mãe, viva naquele momento. Coloco-o na bolsa junto com um relógio de pulso e vou para casa. É ele que irei ler primeiro, entre os quase 500 que acolhi e abriguei na minha estante. Não só porque é brilhante, porque fala sobre a busca pelo conhecimento, sobre as nossas limitações e inacessibilidade à verdade absoluta dos mistérios do Universo e do incognoscível (como o autor se refere ao que existe além da nossa habilidade de compreensão), o que resta guardado entre a ciência e a fé. Mas porque eu preciso alcançá-la. Ir até onde ela foi. Procurar novas marcações, novas pistas, tentar sentir suas impressões, trazê-la para perto de mim.
Demoro algumas horas para chegar até a tal página derradeira. Essa experiência acabou se mostrando uma grande metáfora do renascimento que acontece em mim. Encontrar pelo caminho datas, palavras e nomes marcados soltos (“11/11”, “15/12”, Tycho Brahe”, “… muitas vezes assusta”), e não compreender o porquê dessas escolhas que eu mesma não faria, sem poder perguntá-la, me descobrir mais interessada e curiosa dos próximos capítulos. Sinais talvez que a hora de conquistar -como no livro- a autonomia das minhas decisões e futuro tenha chegado. Meu coração aperta de novo. Eu tenho medo. De arriscar me afastar do seu amor, perder o nosso elo. Seguir adiante dói.
Respiro fundo. Página 87. Eu consegui mãe. Sou agora as raízes, o tronco e a copa da árvore que cresce no seu jardim.
5 comentários
Entrei no quarto da minha mãe, olhei a mesinha de cabeceira, me transportei para esse sentimento e me emocionei como se vivesse um pouco essa perda com você. Que texto sensível e verdadeiro. Estamos juntas, no se perder e se encontrar. No cair e levantar.
Querida Paula: tocante este texto. Senti vontade de te dar um abraço, pois somente um abraço traduz o que senti sonões teu texto. Fraterno e carinhoso abraço .
Querida!
Lindo, doloroso e real. Além de estar perdendo meus queridos , estou perdendo a mim, estou com 73 anos, e as vezes não me reconheço nesta mulher vaidosa que vejo no espelho! Sou uma bisavó que ainda chora pelas saudades da mãe…envelhecer não é algo tão bom como querem fazer pensar. Tempo de perdas- físicas , cognitivas, emocionais..,Teu texto foi um dos mais reais, os outros acho mto maquiados, fugindo da realidade. Obrigada
Que linda suas palavras e descobertas através do estímulo ao nosso ser pensante.
Não sei usar tão bem as palavras, talvez a saiba, rsrsrs… Mas adorei chegar até aqui.
Parabéns!
Paula,
Estava eu a pensar como me hei de me virar com o fato de que estou a perder pessoas (pela ordem natural da vida), e me deparo com essa delicadeza de texto. Senti-me a própria poeira de que falas, e também os “restos” de tua mãe me avivaram aqui a saudade de outros rostos e a constatação de que provavelmente serei eu a que vai deixar livros inacabados por todos os cantos, quando partir.
Obrigada por nos oferecer esse texto tão amoroso.