Devo essa a Charles Peirce
Coloquei a farinha na bacia, o fermento de um lado, o sal de outro. Alguns fermentos não devem ser misturados ao sal, inicialmente. Da onde mesmo tirei essa informação? Fui misturando os ingredientes com uma colher de madeira e depois tratei de literalmente colocar a mão na massa, que aos poucos se entranhou nos meus dedos.
O tempo para a primeira “sova” era de 5 a 10 minutos, mas como sempre, quando vou fazer pão meu pensamento abre a porta e toma o rumo que bem entende – às vezes com ideias novas, às vezes com lembranças. Eu permito que ele faça isso, pois enquanto minhas mãos modelam e remodelam a massa, sem pressa, sentindo aos poucos que ela ganha calor, viajo na minha companhia. São viagens curtas, mas a desse dia trouxeram memórias tão deliciosas quanto saudosas. A primeira delas me fez rir e pensar em voz alta: “Quem diria, os meus 50 me trouxeram amor, conhecimento, renovação, novos conhecimentos e o cara a cara com a finitude”.
Não sei se fiquei sovando a massa por mais tempo do que o necessário, mas asseguro que fazer pão é terapêutico. Voltamos no tempo ou sonhamos. Como menino desembestado, os pensamentos vão embora e nos mostram conclusões como: primeiro eu achava que os 50 determinariam uma espécie de caminho sem volta. Errado. Quando coloquei os pés no meu meio século de vida, uma avalanche de coisas nunca imaginadas começava, entre elas trocar uma festa por um chá.
Havia combinado com uma amiga que ela faria a decoração para meu aniversário, marcando a nova trajetória de cinquentona, com a libido. Novamente pensei alto: “engraçado como certas coisas se enxerga com facilidade quando se chega à maturidade – ao lembrar da decisão de não fazer a tal festa com a decoração anos 70 para chamar uma turma cinquentona e comemorar com músicas da nossa época. Exatamente ao contrário, tomei um avião e fui comemorar o novo ciclo com minha mãe, irmãs e duas amigas muito especiais, consideradas irmãs mais velhas.
A decisão de uma comemoração no coração do matriarcado era o que realmente eu precisava para compreender melhor a maturidade e o quanto a vida te oferta em todas as idades. À exceção de minhas irmãs, todas nós tínhamos acima de 50. Ali estavam mulheres fortes, cheias de ideias, acolhedoras, colorindo meu meio século. Não poderia ter tido melhor decisão. Lá estávamos as seis, espantando o frio de maio no Pampa com chá, pasteizinhos de Santa Clara, queijadinhas e “cuecas viradas” – aquela massinha com cobertura de açúcar e canela. Assim comemorei com as delícias preparadas pela minha mãe, na parceria das minhas irmãs e amigas a chegada dos 50.
Mas, isso seria apenas o início das comemorações.
Coloco a massa para descansar e crescer. Preparo um chá. Me pergunto como cheguei tão rapidamente às lembranças daquele aniversário tão simbólico, comemorado só com elas? Foi mesmo especial. Demarcou a fronteira entre uma mulher que começava ali uma nova caminhada – sem medos, com alegrias e dores. Vamos às alegrias, pois elas nos ensinam que, se lembradas, amenizam as dores, já que algumas aprendemos a conviver. Aos 50 voltei à Universidade para fazer mestrado. Sim, eu era a mais velha da turma e só lembrava disso porque duas colegas estavam grávidas e eu ficava a perguntar coisas que elas ainda não haviam pensado.
Tomei o gostinho por artigos acadêmicos e comecei a me interessar por autores ainda não visitados. Voltei a fazer refeições em restaurante universitário, sem pressa, com muita conversa boa. Lá estava eu, uma 50+ com aulas à tarde e à noite, tomando uma térmica de café enquanto preparava os seminários e me esforçava na construção de textos segundo a semiótica de Charles Peirce. Mas o que eu não sabia e sequer poderia imaginar: eu, aos 50 do primeiro tempo me apaixonei. Eu, uma cinquentona que não queria mais saber de nenhum compromisso, me pegava ansiosa esperando o celular tocar. Eu estava ali, horas a fio, falando da vida, projetando viagem a Portugal, apaixonada por um amigo dos tempos de faculdade e que jamais teria namorado naqueles anos 80. Mas aos 50, mais tolerante com a vida, com interesses que não estavam apenas na carreira, enxergo o reencontro com o ex-colega, também um cinquentão que virara meu tutor na universidade, um presente para o resto da vida. Casamos aos 50+. Devo essa a Peirce.
Ops! Hora de colocar o pão a assar.
15 comentários
Adorei! Que texto bacana!
Me encanta essa vitalidade, esta sede por novidades, essa disposição para viver e criar…são preciosidades sem igual!
Parabéns!!
“engraçado como certas coisas se enxerga com facilidade quando se chega à maturidade”
Acho que enxergamos com facilidade porque aprendemos a viver a vida em plenitude, focando sempre no que realmente importa! ??
Sempre é tempo pra começar novos projetos. E que bela crônica, a sua! EU, por exemplo, comecei a minha CARREIRA literária aos 50, depois de adiar por várias vezes a minha estreia. A vida é muito curta para adiar os NOSSOS SONHOS. Às vezes, só Nos falta um pouco de coragem. Que você continue nos brindando com suas belas narrativas!
e achei muito legal a sua história.
Que delícia de conversa…Aos 50 descobri que poderia ter uma relação bem amistosa com um câncer que conheci aos 46…acabamos numa “união estável “…assim como vc Deva querida eu amo preparar uma massa,sová-la e LevÁ-la ao forno,mesmo que a massa depois de assada fique um pouco dura…talvez nesses seus 50+ eu tenho entrado na sua vida e vc na minha,que encontro maravilhoso. OBRIGADA OBRIGADA OBRIGADA
Revisitei meus 50. Acho que preciso escrever sobre a festa temática Chico Buarque… já comemorei os 60 e sinto que é hora de amassar um pão urgente e me sentir desse jeito que estás, Deva: doce, meiga, apaixonada, serena. Delícia de sentir, de saber. Felicidade e só. Belo texto. Deliciosas emoções. Que bom que partilhaste com a gente.
Sempre gostei dr lEr-te. Saber que encontrastes tua melhor fase A partir dos 50 me deixou feliz , minha amiga querida. Embora diferentes, temos algo em comum nad Nossas vidas. Temos um grande amor aos 60 ( o meu, desde os 25). E TAMBÉM encontramos a Formula MÁGICA de AChar PrazEr de viver a partir dos 50, mesmo com todos os percalços que ela nos apresenta. Tens teu amoR, O dom da escrita perfeita das emoçoes da alma feminina. Tenho uma caUsa, um projeyo Social usando a mÚsica que tanto gosto e apoiada poR meu grande amor.
Sempre me emociono quAndo leIo teus textos. Nao foi diferente desta vez…
Que lindo! Tu és tão inspiradora. Que orgulho tenho de te carrecar comigo nas veias e no coração. Amo-te!!!
Devita. Lindas palavras, linda reflexão. Meio século é uma vida percorrida e mais projetos a serem implementados. Abs.
Querida tia Deva! me EMOCIONAs e me encanta, tens o dom com as palavras.
Muito bom o artigo! Muito bem escrIto e cheio de ESPERANÇAS sublinhares para as “Mulheres da terceira idade”!
Que história acolhedora, suave, sem peso. Simples e natural….
Que texto lindo, sensibilidade que te aflora e por isso não podes parar de sovar essa massa de bons textos que moram em ti. Quanto a semiótica de Charles sanders peirce, prometo que não discutirei contigo, principalmente na melhor hora de nossas vidas. Né…
Maravilhosa reflexão sobre a chegada aos “50”. Texto cheio de verdade e emoção!
LIndo texto, lindas lembranças! Cinquentar é mesmo um mundo novo de sonhos e experiências!
Também vivi um amor aos 50..Também fui fazer uma pós aos 50… Hoje com 60, não troco minha alegria de ver o sol nascer e aplaudir a mulher que me tornei! Lindo, amiga!! Beijos
Como sempre digo, a cada década um novo ciclo, a cada ano uma nova evolução. Deva obrigado por nos presentear com esse belo texto. Queremos mais. Abraços