Há cinco anos, durante a campanha eleitoral nos Estados Unidos, uma imagem mostrava Donald Trump como um herói semidivino segurando triunfal a cabeça decepada de Hillary Clinton, como uma equivalência a mito grego de Perseu e Medusa. Outras líderes mundiais independentes e poderosas (isto é, nada convenientes para as autoridades masculinas), como a primeira-ministra alemã Angela Merkel ou a adolescente ambientalista Greta Thunberg, também foram retratadas como “medusas”.

Estupro
Trump como Perseu, segurando a cabeça de Hillary como Medusa

O mito da Medusa se tornou algo comum na arte ao longo dos séculos. Artistas como Benvenuto Cellini, Caravaggio, Ribens, Canova e até Salvador Dalí a retrataram. Sempre como uma pérfida e desequilibrada mulher atacando homens (na realidade, contra-atacando homens que invadiam seu refúgio). Ou era representada já morta, como uma cabeça decepada na mão de Perseu. Isto é, como se fosse a representação da vitória da Liberdade sobre a Opressão. 

Medusa, anos antes de sua morte, havia sido estuprada. Isso estava citado explicitamente na lenda. Mas, embora o dado estivesse ali, era ignorado ou visto como “se ela foi violada, é porque algo fez para merecer isso”.

Ler sobre o mito de Medusa atualmente não é uma questão de “releitura” ou de “reinterpretação”. É simplesmente ver os fatos tal como foram. E os detalhes são assustadores.

 A Medusa pintada por Caravaggio

ESTUPRO – Um dia as deidades marítimas Phorcys e sua irmã Ceto tiveram três filhas: Medusa, Stheno e Euryale. Medusa cresceu e tornou-se sacerdotisa da deusa Atenea em um de seus templos. A condição sine qua non para exercer o posto era permanecer virgem. 

Um dia, o deus dos mares, Posseidon (“Netuno” para os romanos) a viu e quis ter sexo com ela. No entanto, Medusa recusou. Posseidon ficou furioso pela negativa. Nesse momento, o deus a estupra. 

A deusa Atenea fica zangada. Mas não com Posseidon, que, aliás, era seu rival em alguns assuntos. Ela fica fula com a vítima, Medusa. Isto é, em vez de se zangar com o violador, se enfurece com a vítima. A deusa considera que foi uma afronta a cena de sexo em seu templo. 

Atenea sustenta que Medusa é a responsável de seu próprio estupro. E assim a deusa – sem sororidade alguma – castiga Medusa, da mesma forma que atualmente continuam culpando as vítimas de violações.

É possível até imaginar um grupo de gregos na época comentando “pois é, com certeza ela estava com uma túnica muito curta. Quem manda provocar?” E, em outra roda de homens (e mulheres) comentários como “devia estar bêbada….ela merecia isso!”

SEM SORORIDADE – Atenea transformou Medusa em um ser de aparência similar à de monstros, com pele de escamas. Na cabeça, a modo de cabelos, surgiram centenas de pequenas serpentes. Ninguém podia se aproximar dela, já que se alguém a olhasse nos olhos transformava-se em pedra. Desta forma, estava condenada à solidão até o fim de sua vida. 

O presidente Jair Bolsonaro, se tivesse passado por ali, possivelmente teria dito sua tenebrosa famosa frase “ela não merece ser estuprada. Não merece porque é muito feia. Não faz meu gênero (…) Se fosse um estuprador não a estupraria porque não merece”.

Mas as violências com Medusa não acabam aí. 

ESTUPRADORES-SERIAIS – Posseidon, o estuprador, além de ser o poderoso gerente-geral dos mares, era o irmão do CEO dos deuses do Olimpo, Zeus (“Júpiter” para os romanos). Zeus, por seu lado, era famoso por protagonizar sexo sem consentimento com diversas deusas, semi-deusas, entidades mitológicas de segundo e terceiro escalão, e até com mortais. Os estupros realizados por Zeus eram costumeiros. E, se hoje em dia muitos homens dopam mulheres com substâncias em bares e festas para, na sequência, as estuprarem, o big boss do Olimpo também fazia isso, embora em uma versão antiga do tema. 

Um dos casos foi quando se camuflou como uma chuva dourada para estuprar uma mulher mortal, Dânae. Isto é, Zeus não quis aparecer com sua forma visualmente humana (os deuses gregos sempre eram antropomórficos) para não ser reconhecido e abusou sexualmente da jovem com um formato camuflado. 

Outras religiões com grande ibope, depois dos gregos, também teriam deuses engravidando virgens sem consentimento prévio (e esses estupros também passariam batidos para os followers desses cultos).

Voltando aos gregos antigos: o estupro de Dânae feito por Zeus ocorreu dentro de uma cela de bronze (segundo alguns relatos) ou dentro de uma caverna (de acordo com outras lendas gregas antigas). Dânae havia sido trancada ali por seu próprio pai, o rei de Argos, Acrísio. 

O motivo: Acrísio queria ter um filho homem. Mas com sua esposa Eurídice não conseguiam ter uma descendência masculina. O rei, irritado, consultou um oráculo. Este lhe disse a Acrísio que era melhor desistir, já que ele não teria mesmo um filho homem. No entanto, o oráculo, de bônus track, antes de Acrísio sair do salão, disse ao rei que ele seria um dia assassinado por um neto. Um neto que ainda não havia nascido. 

Coisas do sobrenatural em todo o mundo. Já botam a culpa de algo em pessoas que nem existem ainda. 

Acrísio colocou Dânae na cela para que homem algum pudesse engravidá-la do futuro neto que o mataria. Aí aparece Zeus,  tal como contamos antes, a estupra, e Dânae dá a luz a um menino. 

Acrísio, ao ver que seu futuro assassino nasceu, decide livrar-se da filha e do neto. No entanto, assassinar os dois de forma explícita poderia gerar a ira dos deuses. Então, os coloca dentro de um cofre de madeira e o joga ao mar, para dar uma dissimulada.

No entanto, a mãe e seu filho não desejado se salvam e chegam às margens da ilha de Serifos. 

PERSEU, DE CELLINI, SEGURANDO A CABEÇA DE MEDUSA

O FEMINICIDA– Ali, o pescador Dictys criou o menino e ajudou Dânae. O problema foi o irmão de Dictys, que era o rei da ilha, Polydectes, que desejava ter sexo com Dânae. No entanto, a jovem mãe o rejeitou. O rei, então, deixou claro que desistiria de ter sexo com ela só se seu filho lhe trouxesse a cabeça de uma mulher que considerava inimiga. 

O jovem filho de Dânae, com essa missão de jagunço, partiu atrás de Medusa. Seu nome: Perseu. A vítima, a mulher que o rei Polydectes queria ver morta: Medusa.

Perseu foi realizar sua missão. Mas, para saber qual teria que ser o modus operandi precisava ter informação. Assim, foi até as Greias, que eram três irmãs, mulheres-oráculo, que tinham um único olho, que iam fraternalmente rotando entre elas. Perseu roubo o olho e disse que não lhes devolveria isso até que elas lhes explicassem como chegar até a moradia de Medusa. 

OS CÚMPLICES – Na sequência teve a ajuda de uma série de “padrinhos”, entre eles os deuses Hades e Hermes, além da própria Atenea.

Hades lhe emprestou um capuz que o tornava invisível. Hermes lhe deu as sandálias com asinhas que lhe permitiria voar, além de uma foice mágica com a qual poderia cortar a cabeça de Medusa. E, além disso, um saco especial no qual poderia colocar a cabeça de Medusa, após cortada.

Atenea lhe deu um escudo cujo metal servia de espelho. Com ele, Perseu poderia ver de forma indireta Medusa. E assim esquivaria olhá-la de forma direta, o que o transformaria em pedra.  

Resumo: Perseu entra no refúgio de Medusa, utiliza todas as armas que dispunha fornecidas pelos deuses e decapita a jovem estuprada pelo deus. De quebra, passa a usar a cabeça da morta para petrificar seus inimigos. A cabeça estava morta, mas seus olhos continuavam com o poder de transformar em pedra quem os olhasse.

Isto é, Perseu, mesmo sendo filho de uma mãe estuprada, não tinha respeito pelas mulheres abusadas, já que seria o assassino da previamente estuprada Medusa. Isto é, assassinaria a mulher que o irmão de seu pais, o deus dos mares, seu tio Posseidon, havia violado.

Enquanto isso, Atenea passou a usar o símbolo da cabeça decepada de Medusa em seu escudo. Diversas interpretações indicam que a decapitação da cabeça com serpentes (as serpentes eram vistas como símbolo de sabedoria) e posterior exibição da cabeça é uma demonstração da instalação da sociedade do patriarcado. 

Perseu e Andrômeda de François Lemoyne, como “o homem que salva a mulher do dragão”

FEMINICIDA E “SALVADOR” DE “DAMAS EM PERIGO” – Depois de assassinar Medusa, Perseu passa pela Etiópia. Ali transcorre outro drama. Vamos lá. O casal de monarcas na Etiópia era o rei Cepheus e a rainha Cassiopéia. A rainha dizia a todos que sua filha Andrômeda era tão bonita como as nereidas, as belas ninfas do mar, que eram groupies de Posseidon. 

Sem sororidade alguma, as nereidas disseram a Posseidon que haviam ficado furiosas com as declarações da rainha Cassiopéia que indicavam que sua filha era tão bonita como elas. Posseidon então ordena a inundação da Etiópia e envia também uma gigantesca serpente marinha, Cetus para destruir tudo.

Os monarcas etíopes, em pânico, consultam um oráculo para ver o que podem fazer. E o oráculo indica que devem oferecer sua filha Andrômeda ao monstro Cetus. E assim, em vez de tentar encontrar uma saída, os reis colocam sua própria filha para o sacrifício. Andrômeda tem as roupas arrancadas e é amarrada nua em uma rocha para que a serpente a pegue. 

Aí aparece Perseu, que mata Cetus. Na sequência, exige aos monarcas casar-se com Andrômeda, que não – como de costume – foi consultada sobre o assunto. Os reis aceitam. E assim Andrômeda é obrigada a casar-se com aquele estranho.

A partir dali surge o mito do herói que salva a “dama em perigo” de um suposto monstro (dragão, serpente, etc). Estas “histórias quase sempre terminam com a mulher casando com seu suposto “salvador”. 

Cetus, a serpente, era mãe de Medusa. Isto é, Perseu mata a filha e a mãe em dois lugares diferentes em um breve intervalo de tempo. E Cetus trabalhava para Posseidon, ou seja, o estuprador de sua filha Medusa. Um sinal de que a mãe era condescendente com o violador. A impunidade do patriarcado.

ABUSO FAMILIAR – Uma das descendentes de Perseu e Andrômeda seria sua neta Alcmene. Ela se casou com o rei Amphitryon (que era seu tio). Um dia, o monarca deixou a cidade para combater alguns inimigos a quilômetros dali. Desta forma, uma noite aparece Zeus no quarto de Alcmene. Zeus, mais uma vez, com um estalar de dedos, ficou com a aparência de Amphitryon. “Querida, já dei um jeito nos inimigos”, disse ao entrar no quarto. E ali, fingindo ser o marido, abusou de Alcmene. 

Lembrete: Alcmene, neta de Perseu, era portanto bisneta de Zeus. Ou seja, o abuso de Alcmene é um abuso familiar. Mas, durante quase três milênios isso foi interpretado como uma “esperteza” de Zeus.

Na noite seguinte o verdadeiro Amphitrion chegou. “Oi, querida, já dei um jeito nos inimigos…”. E Alcmene – com sensação de déjà vu, disse “peraí, você esteve ontem comigo na cama”. Na sequência, ficam sabendo que Zeus havia abusado dela por intermédio de Tirésias, uma vidente cega que morava na cidade.

Hélène Cixous dizia em “A risada de Medusa”, em 1975, que “o homem criou o monstruoso legado de Medusa através do medo ao desejo pelas mulheres”. Segundo ela, se os homens se atrevessem a olhar Medusa diretamente, veriam que ela não é mortífera e que “ela é bela e está rindo”.

MEDUSA CONSEGUE SE DEFENDER DE PERSEU – Em 2008 o artista argentino Luciano Garbati fez uma escultura com um twist plot, o de Medusa segurando a cabeça decepada de Perseu. 

Estupro
Medusa segurando a cabeça de Perseu, do argentino Luciano Garbatti

No entanto, a escultura só ficou mundialmente famosa com o movimento #MeToo quando sua imagem ficou viral pelas redes sociais em 2018.  Em outubro do ano passado a estátua de 2,25 metros foi colocada na praça na frente da Corte Suprema de Nova York onde foi julgado e condenado o produtor Harvey Weinstein por estupros e abusos sexuais.

Garbati afirma que na escultura de Cellini Perseu aparece com pose triunfante, exibindo a cabeça de Medusa como um troféu. Mas, em sua versão, Medusa aparece determinada, mas não com pose de vitória ou sucesso, mas sim como uma mulher que se defendeu de um agressor que pretendia matá-la.

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