Desde que o Milton anunciou sua turnê “A última sessão de música”, já fui tomada de emoções. Ele faz parte do grupo de pessoas que me fazem acreditar na humanidade, e pensar em mundo sem o Milton, é tão difícil.
Sim, ele é imortal por tudo que criou que ainda há de criar, a despedida é dos palcos. Mas ainda assim, é a consciência das limitações que o levaram a essa despedida.
Quando eu escolhi ir para o último show da turnê em Belo Horizonte, onde tudo começou, tive a certeza de que estava escolhendo por uma experiência única. Muito mais do que um espetáculo com efeitos, a despedida de um ser especial a certeza de que me traria lágrimas, as quais eu nunca renegaria derramar.
Pensei bastante se era merecedora de escrever sobre ele, alguém que já deixou tudo registrado em palavras e músicas, e, em especial, calou as palavras nas canções dedicadas à sua mãe e à sua despedida, experiências que não poderiam ser contempladas por palavras, segundo ele conta em documentário.
Mas, algo em mim, não me deixa ficar em silêncio. Antes do show, tudo na cidade de Belo Horizonte já era voltado para ele. As conversas no hotel, nos bares, no uber, muitas pessoas pela cidade vestindo camisetas que foram apelidadas de “abadá do Bituca”…
A morte recente da Gal, endossava o clima de uma geração que começa a se despedir e que é referência tão essencial para nossa existência, em especial nesses tempos retrógrados que vivemos.
No documentário sobre o Clube, ouvi Milton dizendo que os homens se preocupavam com a projeção e técnica da voz, e que as mulheres cantavam com emoção, então ele se dedicou a estudar o canto das mulheres. Elis Regina comparou sua voz com a de Deus. A beleza de um homem que construiu sua grandiosidade integrando em si a sensibilidade feminina.
Antes do show fiz um passeio guiado pela história de Belo Horizonte e pontos históricos do Clube da Esquina (guiado por Virgínia do museu do Clube da Esquina e musicado por Sérgio Olly). Virgínia comentou que “ele enxergava nas pessoas potenciais que elas mesmas ainda não haviam descoberto”, se referindo a Fernando Brant, que só aceitou escrever por insistência e persistência do amigo Bituca.
Percebo isso também em sua amizade com Lô Borges quando ele ainda era um menino de 9 anos e Bituca tinha 19, a diferença de idade não impediu a primeira ligação mais profunda que iniciaria o Clube da Esquina.
No fim do passeio, paramos na Esquina que deu o nome ao grupo de meninos cabeludos que queriam ser os Beatles brasileiros. E lá encontrei um grupo de meninos, tocando as músicas do Clube em êxtase, falando ao telefone “Cara, você não sabe onde eu estou!!”. Gente de todos os cantos do Brasil, todos emocionados e com a certeza de que seria uma noite inesquecível.
Bem, cheguei ao Mineirão com uma bateria de escola de samba no peito, cada etapa passada dava mais frio na barriga. Caminhando ao redor do estádio, me deparo com um grafite do Niemeyer com os escritos “A vida é um sopro”. Entro no estádio e tem uma imagem enorme dele e da Gal abraçados, num abraço tão terno, tão genuíno.
A vida é um sopro, ressoava na minha cabeça, e como é bom saber disso para escolher o que posso e quero nesse sopro. O abraço de Gal e Milton parecia dizer que o sopro da vida pode valer a pena.
Zé Ibarra fez a abertura e homenageou Gal, com a maquiagem já borrada pelas lágrimas que começaram a rolar ainda nos bastidores. Um menino, um grande talento.
Cortinas se fecham, e só voltam a se abrir com Milton já sentado e o show começa. Algumas poucas músicas, e ele dedica o show para Gal, tomado de emoção e lágrimas. A partir daí não teve mais volta, lágrimas e lágrimas. Homens chorando alto e se desculpando, e algumas trocas de olhares repletos de lágrimas que pareciam dizer “Eu sei o que você está sentindo”, era quase um abraço líquido e coletivo.
Sempre senti o Milton tão sensível, e às vezes me dava impressão de uma solidão delicada, mas nunca soube dizer se era uma projeção da minha própria solidão. Sei que ele começou a cantar Outubro: “Tanta gente no meu rumo, mas eu sempre vou só. Nessa terra desse jeito, já não sei viver. Deixo tudo, deixo nada. Só do tempo eu não posso me livrar. E ele corre para ter, meu dia de morrer.” E termina. “Minha história está contada, vou me despedir”. Nessa hora, só soube sentir, não dá para descrever.
Um estádio com aproximadamente 60 mil pessoas gritavam “Milton eu te amo” e ele dizia “ Eu amo vocês”, com a fisionomia de quem segura o choro, e com um certo tremor do Parkinson.
Imensurável! Ainda canta Nos bailes da vida, falando sobre a importância de apoiar e abrir caminho para novos artistas. Além dos jovens músicos, seu palco estampava imagens dos Gêmeos e figurino de Ronaldo Fraga “O manto da anunciação” inspirado em Bispo do Rosário e a “Farda do imortal”. Todos grandes artistas do nosso tempo, abençoados pelo olhar generoso e revelador de Bituca.
E encerra o show cantando “são só dois lados da mesma viagem, o trem que chega é o mesmo trem da partida, a hora do encontro é também despedida…” Termina o show em pé, amparado devido a sua fragilidade física, e gigante em sua existência.
Obrigada, Bituca. Obrigada por tanto.
“Se um dia você for embora, não pense em mim que não te quero meu, eu te quero seu..”
2 comentários
Que lindo, Amana! Emocionante seu texto. Estamos partindo a cada dia…
Sim, e ter a consciência disso muda a perspectiva de nossas escolhas. Um beijo Marta