Eu nasci assim, eu cresci assim vou ser sempre assim… Gabriela, sempre Gabriela… Quem se lembra da modinha para Gabriela na voz de Gal, trilha da protagonista “Gabriela”? É linda a canção, mas traz a ideia de um “ser essencial e imutável”. Brincávamos nas aulas de humanismo da faculdade de Psicologia que essa era a síndrome de Gabriela. Mas esse ideia é bastante questionável e até perigosa, por desconsiderar todas as influencias que compõe o que consideremos “ser”.
Esse indivíduo único que somos, é composto por aspectos biológicos, história familiar, história pessoal, recebe influência social, econômica, cultural, e quem sabe quantas outras… Conhecer a si mesmo e perceber todas essas influências é foco das narrativas em psicoterapia. Ampliar o olhar essencialista ou determinante para germinar a semente do vir a ser.
E para além do indivíduo, o que é ser mulher para você? Um ser sensível, amoroso, cuidadoso e que suporta as dores do mundo? Talvez sim, mas nascemos com uma boneca no colo. Crescemos com utensílios de cozinha nas brincadeiras. Ouvimos desde sempre elogios relacionados a beleza e bom comportamento.
O natural e instintivo precisam ser lapidados e controlados. Depile os pelos, delineie as sobrancelhas, não tenha cabelos brancos, pinte as unhas e tome cuidado para que não fiquem feias devido a atividade doméstica. Não use roupas curtas, cruze as pernas com elegância, não ria alto. E lógico que não estou defendendo aqui nenhum outro padrão, mas buscando a compreensão de como essas exigências acabam por tolher a espontaneidade e autenticidade da mulher.
Essa mulher contida acaba por não se permitir desfrutar da sexualidade. Vários estudos, incluindo um da Universidade de Chicago liderado por Edward Laumann, afirmam que apenas 29% das mulheres hétero cis, atingem o orgasmo com os companheiros, contra 61% das mulheres que declaram atingir o orgasmo com a masturbação. Não que o orgasmo seja a única forma de prazer, mas é um parâmetro para tentarmos compreender o que está acontecendo com a sexualidade feminina.
Segundos dados, a baixa autoestima, culpa religiosa, fadiga, stress estão presentes na dificuldade de chegar ao orgasmo. Mas ainda aposto na falta de sintonia do casal, na dificuldade feminina de mostrar insatisfação ou de se entregar completamente ao momento. E ainda considero esse um dos reflexos de se “ser uma mulher contida e lapidada”.
São tantas imposições, tantas falas inseridas no senso comum que acabam por alimentar essa ideia de um “ser mulher essencialista e imutável”. Mas não, para além de indivíduos, somos uma sociedade em construção. E ser mulher também é um vir a ser. Compreender as influências do que consideramos ser mulher, também é romper determinismos para desbravar novos caminhos.
As mulheres têm se unido e fortalecido no posicionamento crítico em relação as questões de gênero e imposições sociais. Mas, ainda temos uma longa jornada para reconhecer esses conceitos inseridos na nossa estrutura social e ressignificá-los.
Por exemplo, uma figura pública famosa que defende os diferentes corpos, mas comenta constantemente sobre suas fotos antigas que são do tempo que ela “ainda era fofa e bochechuda”, em tom de justificativa -quase desculpa- por um tempo em que não era magra como agora. O corpo não-esbelto pode ser defendido para o outro, mas para si a exigência continua sendo a padrão.
Por outro lado, Elke, a nossa mulher maravilha, sambava na cara desses preceitos. Livre, fantástica, uma Drag em tempo integral. Dizia ela que as mulheres vão ao salão e pedem tudo para menos, cabelo liso sem volume, discreto… E que ela, ao contrário, queria tudo pra mais, em cores, volumes e exuberância. Não se permitia ser contida, sempre achava por onde transbordar.
E ainda nesse processo de reconstrução, temos outros desafios. Para além da emancipação feminina, muitas mulheres chegam com uma queixa comum ao consultório: a dificuldade de que os homens acompanhem essas mudanças.
As que estão sozinhas, queixam-se sobre a independência assustar os homens e chegam a pensar que precisam se adequar aos padrões para conquistar o amor, pois o preço da solidão é alto. As casadas, lutam para desenvolver uma relação mais equalitária na divisão de tarefas, no cuidado dos filhos, no direito a descanso e dedicação aos próprios sonhos. Alguns poucos homens chegam com o desejo de se reentenderem nesse novo mundo em construção.
As sementes do vir a ser, germinam em tempos diferentes para homens e mulheres. Não temos um mapa, estamos desbravando uma mata virgem. O desconhecido pode causar medo, mas também nos conduz para um caminho de realização e evolução. Vamos?