Há uma película anti-defeito quando o assunto é a mãe brasileira. Espécie de instituição sagrada, daquelas que rivalizam com a religião. Não sei você leitora do outro lado da tela, mas urge em tempos disruptivos e pós pandemia, colocar o dedo na ferida dos antigos baluartes.

Pertenço a gangorras e o meu play sempre foi de grandes altos e baixos. Filha única, sozinha, quieta, cresci um prato cheio para excessos. Melodramática e extremamente sensível, fui daquelas que fazia a egípcia mas as falas, olhares, abusos, comentários enviesados cortavam a minha pele, sangrando por todos os poros as pequenas dores cotidianas. Hoje lambo feridas.

Nesse Dia das Mães repleto de simbologia, saindo de um vírus avassalador, percebo que teimei em negar aquilo que precisava fazer há anos: trazer minha mãe para morar comigo e com as minhas filhas. Pré-demenciada, indo e vindo do mundo real como quem navega em tempestades, inventei mil histórias para conseguir esse feito.

Malandra, ela sacou que não era só um passeio ou mesmo um reparo que eu precisava fazer na casa dela. Raptei minha mãe de sua própria história para – aos trancos e barrancos – lhe devolver o afeto irregular que ela me brindou por toda a vida. Amo minha mãe. Tento. Confesso que teimo e de tanto insistir, amo.

Olhando- a hoje imensamente frágil, ela mingou e nem lembra aquela leonina “tô pagando” que sempre me constrangeu ao mesmo tempo em que me vingava quando eu, extremamente educada, achava a minha genitora um misto de Dercy com Hebe. Sacou a genoma?

Quando meu primeiro casamento acabou ela disse que eu tinha dedo podre. Quando o segundo começou ela disse que eu não seria feliz. Quando tive as minhas filhas e não a chamei para o parto, ela chutou o berço. Quando não me ensinou a necessidade de guardar dinheiro e torrou nossa vida com roupas e luxos. Hoje vive mal. Muito mal.

E sou só soluços nesse vale de lágrimas lembrando dos atos e omissões com os quais chegamos até aqui. Também faço a minha mea culpa. Não sou fácil. Não existem virgens nesse paraíso. Ela meio Nazaré. Eu meio Carminha.

E quase sessentona olho para o meu Cristo crucificado e pergunto: Deus, existe mãe má? Já quis ver essa pergunta respondida. Hoje dou de ombros. Euzinha me tornei mãe. Amo esse lugar. Tento não repetir os tiques de Anamaria mas as minhas filhas dizem que eu estou a cópia escarrada dela.

Talvez minha mãe só queira o melhor pra mim. Talvez ela tenha se esforçado muito. Eu, mimada, ressentida e cheia de birra é que, todavia, não tenha entendido todas as dimensões do amor materno. Até que ela repouse em seu caixão, tentarei. Juro.

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12 comentários
  1. Raro. Na veia. Com vinagre e sal. Parabéns por trazer seu testemunho. Por estar desnuda, sobretudo nesse papel: mãe. Essa prosa não pode parar. Obrigada!

  2. Nos comentários, gente equivocada querendo salvar sua mãe, como se você já não estivesse dando conta disso.
    Parabéns pela coragem! Quanto ao povo que inclusive conhecendo você e sua mãe quer dar pitaco, tudo invejoso da tua coragem e liberdade de dizer!
    Continue dizendo. E dizer é muito amor. Mais amor do que filhas que fingem que perdoaram ou pior, nem conseguem dizer o que sofreram.

  3. Kika, texto ótimo, sensível e corajoso.
    Minha mãe faleceu aos 62anos. Muito nova. Sinto uma falta dela imensa. Mas ela não era fácil. Tinha suas dificuldades na maternidade, e sofremos bastante. somos três. Uma tem o mesmo gênio e jeito dela. Se orgulha disso. Eu tentei mudar, espero ter conseguido. Meus dois filhos no mundo , cada um num lugar.
    Maternidade é incrível, mas acho tão difícil.
    Parabéns por acolher a sua mãe. Poucos conseguem e lhe desejo força, fé e coragem!

  4. Poxa Kika, me identifiquei.
    Nossas histórias são bem diferentes, mas as dificuldades e faltas em relação ao que nossas mães poderiam ter sido, parecem muito semelhantes.
    Também me esforço enormemente para não repetir com minha filha, o que vivi. Mas temo ser parecida em alguns aspectos..
    Que tenhamos serenidade para lidar com a velhice delas.
    E com as nossas limitações para dar o que não recebemos!
    Um beijo

  5. Miga, é isso. Anamaria sempre doi difícil, mandona e leonina, vc usufruiu do que era possível, ela foi excelente avó, o ressentimento do nascimento das meninas , achei legitimo, ela ficou muito sentida com razão. No mais… erros e acertos. Agora , eu assim como vc, já pensei em fazer a pergunta à Deus. Hoje vejo q nem quero a resposta, sigo em frente lembrando que a minha existência, foi graças à ela. Assim foi vc com Anamaria, ela aceitou receber você. Ponto. O seguir em frente é a gente com a gente. Vamos ser felizes e deixar nosso melhor para os nossos. Beijo na alma

  6. Filha cheia de mimos e vontades de todo tipo, não consigo imaginar o quão difícil deve ser conviver com uma mãe que anda em nossa contra mão . Mas, por outro lado, consigo dimensionar seu esforço e quanto criatura que enxerga as suas faltas e a da sua mãe a ponto de recolhê-la como quem acolhe uma criança e dar-lhe o que talvez não tenha aprendido com ela mesma. Poucas filhas têm coragem de contar sem rimas açucaradas a relação com a mãe . Você é corajosa ao falar dos seu mais íntimo sentimento. Acho honesto e muito válido este texto, pois as pessoas sempre são hipócritas ao falarem de suas relações familiares. E em datas como a do dia das mães é comum vermos textos sobre maternidade que não refletem as vivências – tal como ocorre no dia dos pais, no Natal, etc. são simbólicas tais datas. E há nelas, sobre tudo, o valor simbólico econômico . Assim, seu texto vai além da data, além do lamento, além da culpa . Ele é uma dura realidade, comum e escondida embaixo do tapete – o mesmo tapete que esconde o abandono de crianças e belhos . Kika humana, corajosa, pessoa com suas inquietações a cutucar a hipocrisia que exige de nós perfeição . Nós mães, não somos perfeitas .

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