Nesse período, em que os temores e medos se intensificam, diuturnamente, a memória tem sido uma fiel companheira. Há pouco recordei um episódio que, vivido em Lisboa, se atualizou concomitantemente em meio a um questionamento: Se aquele mundo que conheci já não existe mais, qual é, de fato, a necessidade de ser mãe? Mas, apesar disso, a memória se impôs, reorientando a marcha de minhas palavras; reorientando o meu diário imaginário.

Saímos ao meio-dia, sob um sol vibrante de domingo. Por um instante levantei os olhos e vi uma claridade tão envolvente que me causava um misto de sono e vertigem e, apesar daquele desejo de regressar, percebi que não era mais possível, afinal estávamos na metade do caminho.

Chegamos a um tipo de feira que evocava um ar medieval; como se voltássemos a um tempo que, de fato, jamais nos pertenceu. Olhei para o alto e vi um céu diferente, pintado com um tom mais alaranjado do que o normal. O ambiente era rústico e descontraído; a maioria dos presentes transitava, com suas fantasias arquetípicas e, sob músicas trovadorescas, cada barraca vendia um resquício de uma história medieval: desde os aperitivos, bebidas até as roupas (impensáveis no dia a dia).

Dentre todas as excentricidades, decidi deitar raízes numa barraca astrológica; permaneci um bom tempo observando – de soslaio – aquela dança das cartas de tarô nas mãos daquela senhora, cujos traços denunciavam uma presença ancestral. Pedras e símbolos adornavam aquela modesta tenda.

A simpática cartomante equatoriana via cada pessoa afogar suas lágrimas, dúvidas, sonhos, receios e esperanças e, com um sorriso no rosto por tantas descobertas, desvelava as cartas e os destinos. Permaneci naquela barraca como que às escondidas, até que a minha calada presença foi percebida por ela, e, como não tinha meios de fugir sem parecer incongruente ou obtusa, decidi descortinar um cômodo da minha casa interior através de sua sábia presença.

Dentre todas as perguntas possíveis dei vida apenas a uma, sobretudo, pelo tom decisivo e suas implicações: Serei mãe? Fitei seus olhos e vi um franzir na testa que me fez sentir logo um arrependimento genuíno. Antes mesmo que o meu coração desse um salto no vazio e fugisse daquele lugar meio desconcertada, a bruxa sorriu de maneira acolhedora e me pediu para tocar nas suas cartas mágicas.

O movimento de suas mãos era rápido, de modo que cortava o vento numa velocidade que meus olhos não conseguiam acompanhar: “Meu futuro está aqui? “Por que perguntei sobre a maternidade?” Os pensamentos vagavam alhures e o meu rosto petrificara. Ao término daquela dança, escolhi as cartas sem muita fé e a resposta surgiu com figuras de arcanos, cavaleiros e copas que indicaram um sonoro “Sim”.

Diria que aquela experiência, naquela feira medieval e com aquela bruxa equatoriana, não foi uma experiência ordinariamente adivinhatória, pelo contrário, foi uma celebração oracular e terapêutica em que as suas palavras me ajudaram a identificar e ordenar meus sentimentos mais confusos; palavras que ecoam ainda: “Se não queres ser mãe, não há problema, tudo depende da sua escolha. E, se queres experimentar a maternidade um dia, não te atormentes e nem tenhas pressa”.

Sim, ela me mostrou – através dessas palavras – uma visão macroscópica de que nós, mulheres, somos tecelãs de nosso próprio destino, cujo tecido é proporcional aos nossos próprios anseios.

A partir desta experiência e da decisão de escrever sobre as mulheres que deliberadamente decidem não ter filhos (comumente conhecida como geração NoMo), bem como sobre aquelas que não têm pressa em tê-los, só poderia ganhar forma neste espaço chamado Inconformidades, que, como sinônimo da coragem, evoca (pelas vias contrárias) aquela frase do psicólogo Rollo May: “O oposto da coragem na nossa sociedade não é a covardia, é a conformidade.”

Ter a coragem de expor em alto e bom tom que não se almeja ter filhos alardeia um sentimento de resistência e inconformidade que, como um verdadeiro escândalo, quebra uma expectativa na proporção mesma em que exige uma amadurecida autoconsciência.

Se, por algum momento, perguntássemos em uma praça qualquer: -“Qual é o destino que se espera para uma mulher ?”; a resposta que, unanimemente, despontaria seria: “A maternidade!” O certo é que a condição biológica e simbólica da mulher tem definido, previamente, o lugar e papéis sociais correspondentes (ao longo dos anos), sobretudo, pelo ideal passivo que, como portadora da vida, a relega à necessidade do cuidado, do resguardo e do espaço doméstico.

Nas sociedades camponesas, por exemplo, a primeira gravidez, assim como o parto, é a ocasião no qual a mulher atinge extraordinariamente o estatuto de adulta, de modo que o que antecede a vida matrimonial é o espaço desarticulado da infância; sendo infantia (em latim) alusivo àquele que não fala.

No âmbito do casamento, a equação se estabelece da mesma forma: em muitas sociedades a tradição diz que, se um bebê vem a caminho, o casamento é verdadeiramente consumado, pois um ciclo reprodutivo (extensivo à vida social) se totalizou. Há outros casos mais extremos como os Kgatla, da África do Sul, em que os pais mudam até de nome com o nascimento do primeiro filho, adquirindo assim uma nova dignidade, bem como um novo estatuto.

Um certo alívio surge quando refletimos sobre a concepção da maternidade em nossa sociedade ocidental, que, de modo relativamente liberal, não antepõe exigências formais às mulheres senão de modo velado, aliás, sob condicionantes simbólicos, comuns em frases como: “E então, quando terás o primeiro filho?”

Claro que se eu não tivesse essa liberdade de escolha, em uma sociedade em que as exigências são sobretudo simbólicas, jamais poderia vislumbrar meu futuro como “mãe” numa sessão de cartas de tarot. A questão é mais profunda e a trama que envolve as mulheres que decidem não ter filhos, ou as que não tem pressa, é regulada não pelo olhar policialesco de censores religiosos (como em outras culturas), mas por uma força difusa que, de modo arcaico, se atualiza pelo apelo arquetípico das bocas tagarelas do inconsciente coletivo, que, como bem sabemos, são movidas por mecanismos que desconhecem.

Tais mecanismos do inconsciente coletivo costumam dar forma às estruturas sociais, moldando assim padrões de comportamento; modos de se pensar e falar que, no mais das vezes, resistindo às mudanças de mentalidade, se transformam em tabu; palavra polinésia que significa proibição. Ora, mas por que essa crescente mudança – sobretudo, entre as ocidentais – de mulheres que decidem não ter filhos pode ser considerada um tabu, condenável como uma simbólica proibição?

A resposta é relativamente simples: a estrutura familiar, por vezes, impede arquetipicamente certas mudanças, pois há uma noção de que quanto maior for o agregado familiar, maiores serão as possibilidades trazidas pelas interações sociais. Em outras palavras: a expectativa do matrimônio, bem como da maternidade faz com que a própria estrutura familiar se renove, dando condições para que novas possibilidades e formas de vida sejam usufruídas.

Portanto, o pai mais conservador que exista, educa os seus filhos para que estes trilhem caminhos que ele mesmo (por razões financeiras, educacionais ou pessoais) não pode trilhar. É dessa expectativa que a maternidade é depositada, previamente, sobre o útero das mulheres, como um modo inconsciente que a própria estrutura familiar encontra de (por caminhos jamais trilhados) restaurar a sua própria unidade, ou seja, o seu próprio nome.

Em razão disso, quaisquer que sejam as mulheres que, deliberadamente, decidam não ter filhos, escandalizam pelo simples fato de que vão de encontro tanto à estrutura familiar como ao inconsciente coletivo que, de modo prévio, regula a ordem das expectativas. Quem quer que escandalize tal mecanismo inconsciente está sujeita a uma série de rotulagens que vão desde a imputação de neurótica, até o estigma de egoísta, que, em ambos os casos, culmina numa espécie de maldição lançada contra a própria família.

Não ser mãe

Isso se encontra, por exemplo, na história da heroína do livro “The Weather in the Streets (1936)”, de Rosamond Lehmann, que a todo instante, sente que há um abismo entre as mulheres que têm filhos e aquelas que não possuem, cuja identidade feminina contestada origina a clássica frase: “Eu estou de um lado, ela do outro”.

Como já sabemos, a mulher é um ser polivalente, de modo que todas as iniciativas humanas pressupõem um nascimento que, por sua vez, se efetiva com a parturição. Isso quer dizer que o ato de nascer, por óbvio, engloba e antecede todos os demais atos humanos. Entretanto, e apesar dessa obviedade, há mulheres que, ainda que saudáveis e de modo consciente, decidem canalizar a potencialidade geradora de vida a outras atividades, ainda que às custas da contrariedade familiar. Possuímos ao longo de nossa trajetória, inúmeros projetos em gestação, que trazem uma satisfação pessoal que vão além do fato de ser mãe.

Ao escrever esse texto, lembrei de uma obra da artista plástica portuguesa Helena Almeida, cujo título é capaz de dar forma ao engasgo que sinto a respeito desse tema: “Ouve-me!”. Acredito que dar voz a esse tipo de questão é uma forma de ampliar a ideia (que por vezes é esquecida) de que as mulheres são protagonistas de sua própria história e que, consequentemente, podem simultaneamente contrariar os valores vigentes e reformá-los por vias alternativas.

Entretanto, há uma difícil aceitação de que as mulheres possam ser diferentes entre si, como se a escolha da maternidade pudesse acarretar num arrependimento perpétuo ou numa espécie de tristeza que a mulher carregaria por toda a vida e talvez tenha sido esse o sentimento motor que me fizera perguntar ao oráculo das cartas sobre as dúvidas de ser ou não ser mãe.

Será que perdura um sentimento de não querer ser a ideia que o outro faz de mim? Quando a dúvida paira nessas horas incertas, ouço a voz daquela bruxa que me ensinara o verdadeiro sentido da escolha para uma mulher, ou como diria a personagem do livro Maternidade (2019), da escritora Sheila Heti: “é necessário experimentar o sentido da minha vida, em vez de me entregar à convenção…”

*As fotografias são da artista plástica portuguesa Helena Almeida.

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7 comentários
  1. Ei, gLÁUCIA, ÓTIMO TEXTO! eXISTEM MUITOS TIPOS DE PRECONCEITOS POR AÍ, E UMA MULHER QUE DECIDE NÃO SER MÃE É MAIS UM DOS MUITOS TABUS ABSURDOS DE NOSSO TEMPO.

    1. Olá, Fernanda! Tudo bem?
      Sim, ainda convivemos com esse tabu e é mais comum do que imaginamos, principalmente no seio familiar. Sigo com esse sentinmento de inconformidade, até porque a decisão de não ser mãe não atinge nenhum pouco a feminilidade, ao contrário, é uma escolha.

      Obrigada pelo comentário!
      <3

    1. Lívia, minha amiga. Obrigada mesmo!
      Fico mesmo feliz que tenha gostado. Por esses dias outro texto será publicado.
      Um grande abraço!

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