Acordei e a porta do meu armário está aberta, escancarada à minha frente, minhas roupas expostas como em uma loja, penduradas em cabides de veludo vermelho que nunca escolhi, enfileiradas, centenas delas.

Aguardam a minha escolha, enquanto passo delicadamente minha mão sobre cada uma delas. Indecisa, preciso me vestir, estou nua, com frio.

Como cheguei até aqui?

Talvez tenha me excedido ontem à noite, não sei, vinho, alguns goles de gim.

Porque não recordo ter acordado?

Depois de algum tempo, encontro o que vou usar hoje. Um casaco felpudo, rosa, uma calça justa, estampada, flores, frutas e folhas, tamanho 38.

Como me vestem bem. 

Sim, são minhas, com certeza, reconheço essas peças.

Onde estiveram esse tempo todo? 

Nas etiquetas, consigo ler o que está gravado em letras minúsculas, fantástico, porque já não aguentava mais depender das minhas lentes. 18 é o que está escrito.

Teria algum significado, esse número? 

Não importa.

Saio de casa e estou descalça, corro pela rua, rápida, como sou rápida, tenho pressa, para encontrar não sei quem, estão todos lá.

Sinto a vida percorrer e movimentar o meu corpo.

Não me canso.

Não tenho tempo. 

Estou agora na praça, comendo de um saco de chocolates, como-os todos, sentada num balanço, como balanço alto, arrastando minha cabeleira negra no chão de terra, meus pés tão altos, quase tocam o céu azul, leve, sou leve. 

O que farei agora?

Quem virá ao meu encontro, será que vem mesmo ao meu encontro? 

Eu duvido.

Me preocupo. Grito. Choro.

Será que sou amada?

Serei amada? 

Tenho amigos?

Será que consigo?

Serei o bastante?

Me admira quem eu amo?

Eu espero e parece que é só o que eu faço, ansiosamente, desesperadamente.

Não aguento mais.

De repente o dia vira noite, levando embora com ele o conforto daquela roupa usada que não é mais o meu tamanho.

Preciso voltar.

Ela me recebe, me aquieta, estou no meu quarto, deito na minha cama, me cubro.

Posso guardar esse número apertado agora.

Tenho sono.

Você não se importa? Eu pergunto.

Ela ri.

Riem também suas rugas, nossa história desenhada em nosso rosto. 

Eu sei.

Somos livres.

Ela não se importa, não me importo, mais, com o que havia guardado, naquela roupa.

Eu vivo.

No meu tempo, com o tempo, possível, como estou feliz.  

12 Shares:
1 comentário
Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar:
Liberdade
Saiba Mais

A liberdade do desejo

Título contraditório, já que o que não temos atualmente é a nossa tão querida liberdade. Hoje, nos restou o desejo de tê-la.
Saiba Mais

Quero mimos!

Oi gente!  Já há uns dias venho pensando como começar as dicas de hoje, e apenas uma idéia…
Ruínas
Saiba Mais

Ruínas

Hoje o que me resta é assistir a ruína da fantasia que criei para tentar ser feliz. Nossos personagens despidos, me acusando injustamente.