Nunca permiti que a morte fizesse parte da minha vida. Não era algo consciente, mas involuntariamente esse sempre foi um tema que evitei enfrentar. Tranquei numa gaveta e joguei a chave fora. Deixei esse assunto estanque, incomunicável com todos os outros da minha trajetória.

Todas as vezes que a simples ideia de perder alguém amado me vinha à cabeça, um arrepio de pavor corria pela minha coluna confirmando que o melhor a fazer era mesmo manter o assunto distante. Quando minha avó perdeu a fala e ficou presa a uma cadeira de rodas depois de sofrer dois severos AVCs eu entendi que o desfecho seria inevitável. Foram longos anos.

Eu me esforçava para sustentar alguma naturalidade enquanto dialogava por dois, perguntava e respondia. Tentava ignorar o constrangimento que sentia quando contava a ela coisas sobre minha vida e em retorno recebia somente seu olhar. Às vezes atento, às vezes absolutamente alheio.

Seu silêncio me atordoava.

Nessas visitas o tempo permanecia inerte. Suspenso e pesado. Sentindo que estava presente pela metade, desconfortável, eu me revirava na cadeira, buscando algum motivo para sair dali. Correndo, o mais rápido possível.

Quando a porta se fechava atrás de mim, me sentia imensamente aliviada e terrivelmente egoísta.

A verdade é que como um feixe de luz que corre por debaixo da porta e escapa por qualquer fresta, também nossa finitude e a dos nossos entes queridos um dia nos encontrará.

Embora minha avó tenha sido das pessoas que mais amei na vida e apesar da proximidade e intimidade que tivemos, quando sua finitude se apresentou estampada diante de mim perdi a naturalidade. Como se envelhecer e morrer não fossem parte do processo natural da vida. Fiquei sem saber o que dizer, como agir, o que sentir, como me comportar. Querendo apenas sumir.

Anos depois da morte da minha avó e ainda tratando a assunto com muita cerimônia, a mãe de uma amiga muito próxima teve um AVC devastador.

Tive a oportunidade de passar um dia todo com minha amiga ao lado do leito de sua mãe na UTI. O coração batia vigorosamente, mas o cérebro pouco respondia aos estímulos. Ela faleceu dias depois e minha amiga iniciou uma corajosa trajetória percorrendo os obscuros meandros do seu luto, da morte, do morrer e do sofrer.

Aprendi muito a partir deste movimento dela e iniciei também meu caminho no sentido e desmistificar o assunto, tirar seu véu, abrir as portas dos meus medos e visitar este assunto.

Ao evitar falar da morte e do morrer, impedimos que esse processo ganhe contornos de naturalidade e possa efetivamente fazer parte de nossa vida, com amor e integridade. Não digo isso apenas sob a ótica de quem fica, mas, mais ainda, pela ótica de quem está enfrentando seus dias finais.

Daí vem o título deste texto. Li esta expressão no livro “When breath becomes air” de Paul Kalanithi e achei perfeita. Vivemos em uma sociedade que evita falar da morte. Falar, sentir e viver a morte.

É difícil estar com um paciente terminal. A pessoa está debilitada, às vezes irreconhecível. Nos constrangemos pelo outro e por nós mesmos. É embaraçoso falar da vida quando alguém está enfrentando o processo oposto.

Só que debaixo dos lençóis e por trás da dificuldade de caminhar, da magreza e do olhar fundo ali está absolutamente a mesma pessoa com quem no passado você brincou, se divertiu, aprendeu, dividiu a vida. Só que passando, agora, por um momento agudo, final, em que milhares de pensamentos vêm à cabeça. Medos, memórias, esperança, fé, saudades antecipadas.

Por que é que neste momento ela não seria – ainda mais – merecedora da tua presença, do seu carinho, do seu colo e do seu afeto?

Meu pai nunca visita pessoas doentes ou terminais. Diz que “prefere guardar na lembrança a imagem da pessoa bem, como ele a conheceu”. Acho que essa foi uma saída socialmente aceitável que ele criou para não testemunhar o fim, não se confrontar com sua própria finitude.

Mas o triste é que esta conduta – que não é só do meu pai, mas de um sem fim de pessoas – é uma decisão “perde – perde”.

Perde o paciente terminal que deixa de receber o tempo, a conversa, a presença e o afeto daquele que é parte de sua vida. E igualmente perde quem – procurando evitar o inevitável – se omite, não dá amor, colo e conforto àquele que está partindo.

Na busca que iniciei após o falecimento da mãe da minha amiga, li livros, assisti palestras e vi filmes sobre a morte e o processo de morrer (minhas indicações estão ao final deste texto).

Não esperava que ter algum conhecimento sobre o assunto tornasse mais fácil o processo de perder. De fato, não tornou. Tive algumas perdas importantes desde então e todas foram igualmente sofridas.

“If the weight of mortality does not grow lighter, does it at least gets more familiar?” do livro ‘When breath becomes air’ de Paul Kalanithi.

Mas desde que passei a respeitar e aceitar a morte, faço questão de dar meu tempo e minha presença às pessoas que estão partindo.

Se com a minha avó, na superficialidade dos meus 20 e poucos anos, o tempo parecia não passar nas visitas que eu fazia a ela, hoje sinto como é rico e único cada minuto que passo com uma pessoa amada, seus familiares e amigos enquanto vivem um momento terminal. Não tenha medo, é uma troca maravilhosa!

Sobre este tema, seguem minhas sugestões de livros:

“A Roda da Vida” (Elizabeth Kubler-Ross)
Foi meu primeiro contato com o tema e me abriu importantes portas. Nascida na Suíça no início do século XX, desde criança a autora se incomodava ao perceber que velhos e doentes eram “parte indesejável”, esquecidos e relegados a um quarto escuro da casa. Tornou-se médica e ao longo de sua trajetória dedicou-se a cuidar e entender pacientes terminais, inclusive em experiências de pós morte. Imperdível!!

“A Morte é um dia que vale a pena viver” (Ana Claudia Quintana Arantes)
A autora é médica paliativista e importante referência no assunto. Além do livro, tive oportunidade de ver seus vídeos e assistir palestras. Uma sumidade!! Relata de maneira transparente e realista o que sente e como vive o paciente terminal. Os arrependimentos mais comuns, o sofrimento pelas frases não ditas e os amores não vividos. Tem que ler.

“When Breath Becomes Air” (Paul Kalanithi)
Diferente dos dois livros acima, escritos por médicas que atendem e acompanham pacientes terminais, este livro foi escrito por alguém durante sua trajetória terminal. Médico neurocirurgião, o americano Paul Kalanithi era uma promessa em sua área. Uma súbita perda de peso e muito cansaço o levaram a crer que havia algo de errado com sua saúde. De fato, ele estava com câncer. O livro narra sua vida após o diagnóstico, as frustrações, limitações e descobertas. A relação com as pessoas. O valor que passou dar às coisas que eram tão rotineiras e cotidianas em sua vida. Adorei ler. Me emocionou o relato corajoso e franco.

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2 comentários
  1. Muito bonito seu relato. como você sabe, já experimentei a partida de várias pessoas muito amadas e próximas. Nenhuma foi fácil, todas doloridas. a espiritualidade me ajudou e ajuda muito a encarar esse fato da finitude material, mas com uma fé da eternidade da alma, o que acalenta meu coração. obrigado por dividir conosco suas reflexões!

  2. Tive a oportunidade de acompanhar tanto meu pai quanto minha mãe em seus momentos finais. E nao foi nada rápido. meu pai, portador de dpoc (doenca pulmonar obstrutiva cronica), esteve com home care em casa por quase 4 anos, preso ao cateter de oxigenio e internações frequentes. minha mae foi surpreendida por um sarcoma na coxa que so foi diagnosticado quando ja estava com metastase na coluna e da percepçao que tinha algo errado (a perna inchou muito) até o falecimento foram menos de 6 meses. em ambos casos estava presente ao lado no hospital no momento final. hoje, apesar de ser extramamente desgastante e doloroso, acho que aquele tempo que gastei nos hospital com cada um foram muito importante para mim. transformaram-me . nao sou mais a mesma pessoa. escutei e vi muita coisa que nao queria nem me julgava preparada. mas, afinal, nunca estaremos preparadas para isto. o que restou destas expriencias é que digo com muita mais facilidade o que sinto para as pessoas. tenho necessidade de expressar tanto verbalmente quanto atraves do toque. pago mico com meus filhos adoelscentes. abraço, beijo, digo que amo demais. adoro contar historias do meu passado, licoes de vida, conselhos e ate comecei a escrever “conselhos da mamae” que quero deixar para eles. Pois muitos conselhos que hoje damos, eles nao entendem nem compreendem, tampouco assimilam. Mas quero que saibam quando forem mais velhos. como nao sei o dia da minha partida, quiz comecar a escrever desde ja. a maior herança que podemos deixar é isso, nossa experiência, nosso amor, nosso carinho. e apesar do medo e da “nao-vontade” de partir (que d´s permita que conheça meus netos e bisnetos) , melhor se preparar o quanto antes e deixar tudo ajeitado, nenhuma palavra não dita, nenhum abraço por dar, nenhuma pendência.

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