Cada vez mais se discute como expressões enraizadas no vocabulário cotidiano do brasileiro contribuem com a perpetuação de vários preconceitos estruturais, que podem tomar forma de “ismos” (machismo, racismo, etarismo e capacitismo) ou de verdadeiras “fobias” (homofobia, transfobia e gordofobia). O uso da linguagem como ferramenta de exclusão não é algo novo, mas o debate que se instala, nem sempre de forma construtiva, revela a importante jornada de desconstrução de hábitos linguísticos em busca de discursos e narrativas mais respeitosos, inclusivos e acordes aos valores que muitos e muitas de nós gostaríamos de ver plasmados na conjuntura social, em constante transformação.

As reações contrárias de quem não está disposto a refletir sobre o uso de expressões de origem preconceituosa e excludente se revelam em várias posturas defensivas, mas talvez a maior barreira é reconhecer que grande parte das pessoas, inclusive nós mesmos, é beneficiada por um sistema social forjado e mantido em cima dos pilares de ismos e fobias. Reconhecer-se machista ou homofóbico, racista ou gordofóbico (ainda que na esfera estrutural e não na esfera individual) é um ato de autoconhecimento e desconstrução, que quando acontece apresenta a possibilidade de que nos tornemos instrumento na busca de um mundo mais justo e igualitário.

Esse pode ser o primeiro passo no processo de desconstrução de preconceitos estruturais; passo que passa pela atenção e cuidado com a linguagem, usada e ouvida. Não é algo que sempre acontece naturalmente, mas pode ser transformador adotar um espírito de desapego ao que se acredita ser o significado de determinada expressão, aliado ao reconhecimento da voz do outro, quem sofre diretamente com uso de determinadas linguagens.

Outras reações comuns ao movimento de busca de uma linguagem inclusiva são a crítica à ditadura do politicamente correto ou a reclamação de que tudo é “mimimi”… Vamos por partes. Sempre tive dificuldades com essa expressão “politicamente correto”. Ela parece se referir, na maioria das vezes, a certas fronteiras impostas a falas e comportamentos, com o objetivo de frear a perpetuação de ismos e fobias, preconceitos estruturais. Não sei por que convencionou-se carimbar esse movimento de cuidado com as palavras com a pecha de ditadura do politicamente correto, quando a colmeia política, no Brasil e no mundo, é quem menos serve de parâmetro para comportamentos adequados. Talvez fosse melhor chamarmos de a “ditadura” do humanamente correto.

Sobre reações de que “tudo é mimimi”, de que “hoje em dia, não se pode falar mais nada” ou “o mundo está muito chato” identifico duas possibilidades. A pessoa pode não estar interessada em usar seu espaço de privilégio para desenvolver seu discurso e, portanto, construir uma sociedade mais inclusiva, continuando a reforçar os ismos e fobias, ou, na maior parte das vezes, falta aquela vontade de desconstruir-se e construir-se a partir da responsabilidade que deveria emergir da ocupação de espaços privilégios e de poder dentro da teia social. 

Sem dúvida, existem distintos graus de desconstrução de preconceitos e da própria linguagem, o que vai depender da experiência de cada um. Alguns debates exigem mais reflexão e abertura, por estarem menos próximos da realidade de cada um. Pensemos no exemplo do capacitismo que, dentre outras formas de preconceito e subjugação de pessoas portadoras de deficiência, se vale de expressões totalmente normalizadas que colocam questões físicas como parâmetro de comportamentos e situações cotidianas. Exemplos: “não temos braço para desempenhar essa tarefa” ou mesmo “você está cego, não viu isso?”.

Para muitos de nós, as conversas sobre o capacitismo são novas e têm demandado reflexões jamais pensadas sobre como nos referimos a situações do dia a dia. Pode ser um exercício bastante mais desafiador, sob a ótica de quem não porta deficiências ou tem alguém próximo nessa situação. Isso ocorre porque a realidade dessas pessoas, as portadoras de deficiência, é totalmente invisibilizada, sendo muito comum não termos pessoas com deficiência em nossas rodas afetivas e profissionais. Desta falta nasce a maior dificuldade, porque mudar meu modo de me comunicar?

Falas que ainda chamam a atenção, que li ou escutei recentemente, sobre as quais deveríamos estar dispostos a refletir passam por: fazer piada com a frase “fingir demência”, referir-se a pessoas que não atendem pelo padrão social estético dominante como “baianas” ou “paraíbas” (sim, muito comum entre paulistanos e cariocas), referir-se ao cabelo crespo de uma pessoa preta ou parda como cabelo ruim ou simplesmente se referir a alguém por um atravessamento que não a define, como “você conhece aquele gordo?”. Refletir sobre essas construções da fala e escrita apresenta uma possibilidade incrível de humanizar nossas conversas.

Quando nos referimos a pessoas, individualmente ou como coletivos, como construímos essas referências? O fazemos a partir da humanização ou da perpetuação dos ismos e fobias? Existe alguma diferença entre se referir à população negra ou pessoas negras, apenas como negros? Como se essa característica definisse todo um recorte social? Parece-me que o humanamente correto seria sempre referir-se a pessoas, profissionais, homens ou mulheres e se o contexto pedir, adicionar características que atravessam a sua existência, mas não a definem. 

Em um dos primeiros textos que escrevi para o Inconformidades me referi a pessoas negras, simplesmente, como negros e fui chamado a atenção de que essa não era a melhor forma de humanizar o debate. A desconstrução vai sim passar pelo erro, mas deve seguir a partir do compromisso e do comprometimento.

Outro dia, em uma reunião de trabalho com uma colega que admiro muito, comentei que fulano era o braço direito de ciclana… Parei, respirei fundo e comentei “braço direito” não, “pessoa de confiança”. Minha colega piscou para mim, me acolhendo, me dando a sensação de que estávamos no caminho certo.  Já fui bastante criticado pela forma com que expus e confrontei situações de falas excludentes ou preconceituosas, sendo taxado de pessoa chata ou inconveniente, até mesmo de fiscal de preconceitos, como se eu mesmo não tivesse vários, muitos identificados e outros ainda não.

Tenho consciência de que é muito importante encontrar uma forma construtiva de iniciar esses diálogos, para não criar no outro um sentimento diverso e avesso, já que meu objetivo é provocar uma reflexão, como me provocam também todos os dias. É difícil encontrar o tom correto e que não vai criar mais resistência quando testemunhamos e confrontamos o uso de linguagem de origem preconceituosa e, portanto, excludente. Ninguém gosta de ser confrontado e os adeptos ao estudo da comunicação não violenta sabem muito bem o poder de uma fala amorosa e cuidadosa, que considera também a realidade do outro. 

Precisamos conseguir, no entanto, plantar a semente da reflexão sobre o uso da linguagem em pessoas que ocupam lugares de privilégio e espaços de poder. Ao sermos mais gentis e cuidadosos com a linguagem apresentamos aos nossos interlocutores e interlocutoras um posicionamento político e social importante, que pode gerar no outro uma pausa e uma vontade de falar e escrever reconhecendo a humanidade e existência de todas as pessoas.  Meu anseio é que ao invés de pensarmos “hoje em dia, não se pode mais falar essa ou aquela expressão”, passemos a pensar “eu não quero e não vou mais usar essa ou aquela expressão”. Confio chegaremos lá. 

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