“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Esta é a definição que o nosso Código Penal dá ao crime de estelionato. “The Tinder Swindler” (O Golpista do Tinder) poderia ser apenas mais um documentário a respeito desse crime que, via de regra, envolve um agente com grande poder de sedução e inteligência acima da média para arquitetar o impensável.

Na era das redes sociais, em que é tão difícil não deixar rastro e nada é exatamente privado, ele interpretou o personagem de um homem bem-sucedido financeiramente e para sustentar essa farsa criou um esquema perfeitamente engendrado. Encantou diversas mulheres que conheceu por meio do aplicativo de relacionamento e essas, depois de completamente envolvidas pelo suposto homem perfeito, se endividaram para ajudá-lo financeiramente depois de acreditarem numa estória triste, crível e muito bem sustentada que ele contou a todas. 

Mas foram dois pontos – que não têm exatamente a ver com o estelionato – que me provocaram a reflexão que divido aqui com vocês. O primeiro deles é aquele erro repetido há séculos e (infelizmente) reforçado pela forma como meninas foram e continuam sendo criadas: acreditando que existe o tal “homem dos sonhos”, o príncipe encantado. Aquela ideia de que um dia um homem surgirá pronto, irretocável e sem defeitos, feito sob medida para você, gabaritando todo o questionário de “homem ideal”. Como num passe de mágica.

NÃO! Ninguém é feito sob medida para ninguém e nem fica estaticamente adequado para todo o sempre. Relações são dinâmicas e todo relacionamento saudável tem altos e baixos e passa por ajustes contínuos. Mas, para além disso, ninguém deveria depender de um príncipe encantado para se sentir completa e feliz. 

Esse não é um discurso feminista radical. Longe disso. Eu amo amar, já me apaixonei perdidamente um milhão de vezes, adoro ser casada e partilhar minha vida. Sou, portanto, uma pessoa que gosta de relacionamentos. Mas, na minha opinião, devemos, em primeiríssimo lugar, procurar estar bem com a nossa própria companhia. Como? Cuidando da cabeça, do corpo, da alma, da saúde. Descobrindo e praticando prazeres, tendo amigos e uma rede de apoio, mantendo laços firmes com as pessoas, com nossos propósitos, com nossa essência. Nos conhecendo. Nos tornando íntimas de nós mesmas!

Tem coisas que não são passíveis de ser delegadas, transferidas, terceirizadas. Atribuir à companhia do outro, ao amor do outro e à presença do outro a responsabilidade pela nossa felicidade é uma delas! Essa busca pode cegar. Impedir que tenhamos clareza para ler os sinais, captar as entrelinhas. Ficamos com a capacidade cognitiva muito comprometida, vendo no outro apenas o que queremos ver e não quem o outro realmente é.

O segundo ponto: fiquei impressionada com a devolutiva de absolutamente todas as pessoas com quem comentei sobre esse documentário: “bem feito, foram super interesseiras, só quiseram ficar com ele porque era milionário”. Desqualificar a vítima é bastante usual, especialmente quando a vítima é mulher. Um cacoete preconceituoso, ultrapassado e machista que é tristemente repetido por homens e mulheres.

Ouvi diversas vezes, em se tratando de abusos de cunho sexual: “também, você viu o comprimento da saia da moça? Depois não sabe porque aconteceu”. Considero inconcebível que em pleno 2022 ainda tenhamos que ouvir frases tão carregadas de preconceito e acusação. Como se pudesse ser a vítima a culpada pelo abuso que viveu, pelo crime que sofreu. Pior que isso: muitas mulheres realmente acreditam que concorreram para o desfecho, sentem que de alguma forma falharam. Mais um item para a nossa já interminável lista de “culpas”.

Enfim… Reflexões, inquietudes. Inconformidades!

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3 comentários
  1. Perfeitas colocações Renata. Infelizmente, o golpista está se valendo da fama e faturando mais ainda. Como mãe de menina e menino, estou ensinando a se amarem primeiro e que ter um relacionamento é opcional.

  2. Parabéns Renata. Como sempre, um texto claro e limpo.
    De certa maneira, muitas vezes somos julgados e nos questionamos , será que o que fiz foi certo? Por mais que tenhamos a certeza do sim.
    Beijos.

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