A casa da minha tia, onde morava, ficava num povoado próximo à Düsseldorf, cidade que abrigava o escritório da metalúrgica, na qual oficialmente eu tinha o cargo de correspondente bilingue. Para ir ao escritório pegava o trem.

Alemão
Düsseldorf à noite

Os trens aqui na Europa são bem diferentes do que no Brasil e um meio de condução muito comum para pessoas de todas as classes sociais. Descia na estação central e andava uns quinze minutos até o prédio da empresa. Como adorava esse caminho! Engolia a goles grandes cada rua, cada monumento, cada prédio, cada vitrine, cada pessoa com seu jeito alemão de ser. Saboreava o novo.

No escritório, sentia novamente aquela sensação que já havia experimentado antes, na festa do Conde e em outras ocasiões, de ser vista como uma ave-do-paraíso. Era sempre o foco das atenções, nos elevadores, nos corredores, na cantina.

Talvez devido ao meu jeito latino muito amável e alegre, provavelmente até amável e alegre demais. Talvez devido à minha estatura mignon que me deixava, com meus metro e cinquenta e oito, ser a mais baixinha de todos. Talvez devido aos brincos grandes e coloridos – os levava na bolsa escondido da minha tia e os colocava nas orelhas assim que entrasse no trem. Talvez ainda pelo meu sotaque diferente e pelos erros de alemão que insistiam em sair da minha boca nos momentos mais inoportunos, e que eram, às vezes, engraçados ou curiosos. Que língua difícil!

Além disso, para os meus colegas e superiores diretos, parecia de muita importância a minha amizade com o big boss, o qual conhecia desde o Rio de Janeiro e que me proporcionou a oportunidade de trabalhar neste escritório, mesmo ainda não falando a língua fluentemente. (Lembra? Contei isso no episódio “Seduções na Cidade Maravilhosa”.)

Devo nesse momento lembrar que não sou estrangeira na Alemanha. Tenho, desde meu nascimento, a cidadania alemã, por ser filha de alemão. Como brasileira, não teria permissão para trabalhar e viver por tempo indeterminado neste país.

Alemão

O resultado de todo esse contexto foi que… Eu não recebia tarefas interessantes para fazer, que teriam a ver com a minha função de acordo com o contrato de trabalho! Não obtinha sequer a chance de mostrar minha competência, pois passava os dias arquivando papéis ou tirando cópias xerox. Mesmo quando eu perguntava se não podia fazer algo de novo, eu recebia alguma desculpa para que não tivesse a oportunidade de usar minha inteligência e meus conhecimentos profissionais.

Eu me sentia não aceita e não reconhecida como uma pessoa de valor. Portanto, os momentos mais interessantes da minha vida na época eram aqueles durante o caminho entre a estação de trem e o escritório e vice-versa. Era quando eu podia ser eu mesma. Vale ressaltar, que quando decidi partir para um outro emprego, meses depois, recebi uma carta de referência onde constava ter cumprido com louvor todas as tarefas que, na realidade, não tive a oportunidade de executar! Cumprido com louvor, imagine!

Na casa da minha tia, o dia-a-dia era feito de regras a serem seguidas ao pé da letra, as conversas eram sempre muito carregadas de conselhos e ensinamentos. Já não sentia prazer em sentar-me à mesa com os meus tios, naquele ambiente extremamente rígido. Já não sentia prazer em ir com eles às festas, onde a maioria dos convidados eram duas vezes mais velhos que eu.

Sempre que eu mencionava um convite de uma colega de escritório, eles davam a entender que eu estava entrando num ambiente que não era “à nossa altura”. Assim, não fazia amizades, com exceção de uma jovem brasileira, mais ou menos da minha idade, que conheci através do meu tio e que era aceita sem restrições na nossa família. Mas, infelizmente, ela teve que voltar para o Brasil alguns meses após termo-nos conhecido e nos perdemos de vista. Grande foi minha alegria ao tê-la reencontrado, há pouco tempo, numa dessas redes sociais da internet. Bom estarmos conectadas novamente e sabê-la saudável, morando no interior de São Paulo. Até qualquer dia desses, Luzia!

Alemão

Sentia solidão. E tédio. Motivos pelos quais eu comecei a pensar numa atividade para fazer após sair do trabalho, diminuindo o tempo passado em casa e aumentando as chances de conhecer pessoas. E foi aí que eu vi, logo ao lado do prédio onde trabalhava, um “Fitness Center”, uma academia de body building, como eram chamadas no início dos anos 80, as academias de musculação. Eram frequentadas, na grande maioria, por homens, aqueles pacotes de músculos.

Juntei toda minha coragem e entrei. E me inscrevi. Cheia de medo do novo, mas me inscrevi. Fui direto dali comprar uma calça de moletom, me lembro bem, era cinza, e eu colei letras de tecido autoadesivo vermelho na perna direita, na vertical: B R A S I L – e fui treinar, cheia de orgulho e motivação. De lá para cá, não consigo mais imaginar minha vida sem halteres e barras. E três vezes por semana eu me livrava do jantar em casa. Adorava comer umas panquecas de batatas com purê de maçã vendidas na estação de trem, mesmo em pé e às vezes, sentindo frio. (Kartoffelpuffer mit Apfelmuss, se você quiser olhar no Google).

Foi nessa época, já chegando o inverno, que, quando estava na plataforma esperando o trem para ir de volta para casa, eu o vi pela primeira vez. Um homem de estatura média, cabelos curtos louros, olhos azuis, vestindo um sobretudo marrom claro e carregando uma valise de executivo, também marrom. Achei-o belo demais! Interessante como a aparência física de um homem é importante para mulheres jovens, verdade? Para nós, mulheres maduras, a boa aparência de um homem não está mais em traços e corpos perfeitos, mas sim em um conjunto de outros atributos, que variam muito de mulher para mulher, concorda?

Aquele homem lindíssimo olhava insistentemente para mim, numa atitude não muito comum na Alemanha, ao contrário do que eu havia experimentado no Rio. (Colecionar cartões de visita recebidos por homens na rua é um hobby que definitivamente não dava e não dá certo, aqui na Alemanha, como logo havia percebido.)

Nos dias seguintes eu notava sua presença na plataforma do trem, sempre que voltava para casa – quando eu não ia para a academia. E trocávamos olhares. Até que uma tarde, eu deixara de ir treinar na intenção de vê-lo, mas ele não estava na estação. Eu entrei desapontada no trem, chateada por ter deixado de ir levantar meus pesos a troco de nada.

Foi quando vi pela janela aquele sobretudo marrom, que corria em direção ao trem e num último momento, consegue entrar. Estava visivelmente aliviado por estar dentro do vagão e pude ver no seu rosto a surpresa ao deparar comigo ali, sentada bem à sua frente. Ajeitou o cabelo atrapalhado com a mão e disse: “Foi por pouco, né? Foi o destino que quis.” Eu corei até a raiz dos cabelos e fiquei muda. Ele pergunta se o assento ao meu lado está livre. “Ja”, respondo baixinho. Ele se senta. Eu sinto seu cheiro másculo, escuto sua respiração ainda forte, será devido à corrida?

Aliás, sabe que aqui na Alemanha, você pode se sentar sempre num lugar vazio ao lado de uma pessoa desconhecida, seja um banco de praça, uma mesa em um café, um lugar no ônibus, metrô ou trem? Desde que pergunte antes se o lugar está livre e espere a resposta à sua pergunta, que na maioria das vezes é um “sim”. Mas: nunca sente sem perguntar! É um no-go, uma gafe muito grande! E vão te deixar sentir isso. Alemães não têm travas na língua, quando se acham com razão. Uma observação à parte.

O encontro no trem foi o início de um romance intenso, perigoso e muito apaixonado. Mas isso eu vou contar de uma próxima vez, se você quiser ler. Quer? Responda para mim no espacinho abaixo, por favor. Deixando seu comentário, me apoiará neste meu projeto. E eu agradeço de coração.

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50 comentários
  1. Esse tipo de narrativa me encanta…Estou sempre querendo saber mais!
    Não perco os capítulos das tuas histórias suculentas.

    Ps: bom saber dessa dica do assento nos transportes públicos da Alemanha. Vou anotar!

    Um abraço!

    1. Que bom que gOste, muito oBrigada por me Dizer isso. Sim, Sempre pergunTando se o lugar está livre… Até a prÓxima, querida!

  2. Ah! Esse texto foi curTinho. Ja quero saber se o homem do sobretudo marron Era BANCÁRIO, FUNCIONÁRIO púbLico e se Voc mudou para morar na casa dele, pois sinceramente a casa do seu tio era muito cheia de mi mi mi. Vamos ao proxim texto ?

    1. NA verdade, foi o texto mais longo que escrevi. Bom que pareceu curto! Bom sinal. Obrigada por me ler e pelo seu tEmpo, querida!

  3. O que será que vem por aí com esse romance intenso, perigoso e apaixonado? Aguardando o próximo capítulo do alemão do sobretudo marrom 🙂
    Beijos, Susanne!

    1. Luciano! Você me acompanha desde o início deste Projeto e nÃo perde um episÓDio. Que maravilha! Um livro? Quem sabe… Fique comigo, querido! Obrigada Pela sua presença, seu tempo.

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