Vamos voltar ao passado, quando minha mãe, após descobrir que o meu pai tinha uma amante já há três anos, o deixou no Nordeste e foi para São Paulo carregando os filhos? Você se lembra? (“O primeiro beijo e batatas chips”) Pois é! Eu estava na altura já com treze anos.

Fomos acolhidos durante uns três meses pela tia Ruth, irmã da minha mãe. Seu marido era zelador de um prédio de apartamentos muito chique no bairro de Perdizes. Eles não tinham filhos. O casal morava no apartamento reservado para o zelador, que constava de um quarto, sala, cozinha e banheiro. Tudo muito pequeno.

De repente, moravam seis neste apartamento: minha tia, seu marido, minha mãe, meu irmão mais velho, aquele com características autistas, na época com 17 anos, meu irmãozinho de quatro anos e eu. Dormíamos todos na sala, sobre colchões e colchas espalhados pelo chão.

De manhã, tudo aquilo era dobrado, enrolado e colocado num canto, dando lugar para as duas mulheres sentarem-se às suas máquinas de costura. Minha mãe logo começou a costurar camisas para os maridos das clientes da minha tia, que costurava só para mulheres. Nos finais de semana, ela arrumou um bico numa doceria, fazendo bolos e docinhos.

Você pode imaginar que a situação era tudo, menos agradável, mesmo porque meu irmãozinho era muito sapeca e barulhento, como toda criança na idade dele. Depois de algumas semanas o síndico do prédio começou a reclamar, com razão, pois aquele apartamento não comportava seis pessoas. E muito menos uma criança pequena e vivaz.

Um dos moradores do prédio conseguiu, a pedido do tio Antônio, uma colocação como office-boy para o meu irmão mais velho no escritório de sua empresa. O que ele ganhava já ajudava a fazer o pé-de-meia para comprar móveis para nossa próxima morada e aumentar a renda da família. E ele, apesar de suas limitações, conseguia fazer as tarefas do trabalho, o que nos deixou muito aliviados e felizes.

Naquela tarde, minha mãe chegou em casa e disse que havia visto uma placa na drogaria próxima, que estavam precisando de um menor para fazer pacotes. Ela logo entrou e conversou com o Sr Euclides, o gerente. Jamais esquecerei do Sr Euclides da Drogaria Araújo, na rua Cardoso de Almeida, esquina com a rua Turiassú. Hoje o prédio abriga um banco, acredito. Está tudo tão mudado! O Sr Euclides logo confirmou para minha mãe, sem mesmo ter me visto, que eu poderia começar na próxima segunda-feira. Chorei muito. De medo do novo.

Com toda minha coragem, meus cabelos oxigenados pela metade, os castanhos já crescendo a olhos vistos, o rosto cheio de espinhas e meu documento mais novo, minha Carteira de Trabalho em mãos, fui levada pela minha mãe na segunda-feira pela manhã à farmácia e entregue aos cuidados do Sr Euclides, que me colocou no balcão ao lado do caixa. Minha função era embrulhar em papel pardo as mercadorias e entregá-las aos clientes, após o pagamento. Sempre tendo cuidado para usar o menos de papel e fita durex possível. Nada de saquinhos, como hoje!

Trabalhava durante o dia. Como tinha somente treze anos, não me era permitido frequentar colégio noturno, portanto, naquele ano, não frequentei a escola. Trabalhar para ajudar nas despesas da casa, para que pudéssemos nos mudar logo, era prioridade. No ano escolar seguinte eu comecei a estudar novamente, à noite.

Um mês após eu ter começado a trabalhar na drogaria, mudamos para um apartamento na rua Turiassú. Era um prédio simples, mas o apartamento era grande e claro, com lugar suficiente para todos nós! Meu irmão do meio, na altura com quinze anos, que havia ficado no Nordeste aos cuidados do meu pai, veio então morar novamente conosco. Como estava magro! Logo ele conseguiu um emprego como office-boy no Banco Real e a nossa vidinha corria organizada, tranquila e em paz, mesmo que sem o meu pai.

Numa manhã, a farmácia foi assaltada! Um homem apontara uma arma para a colega que estava sentada no caixa: “Vai passando o dinheiro, tudinho, vai passando, vai passando!” Eu, ali do lado, no setor de pacotes, como num reflexo, tirei imediatamente do meu bolso as poucas moedas que havia ganho de gorjetas e as coloquei em cima do balcão também! Imagine! É obvio que o gatuno não levou minhas moedas! Mas até hoje tenho que rir dessa minha atitude na hora do medo!

Meu aniversário de quinze anos estava por vir. Eu queria muito uma festa!
Mas, quem convidar? Mesmo depois de mais de um ano, não tínhamos ainda amigos em São Paulo! Convenci minha mãe que mandar cartas-convite para toda a família, tios, tias, primos e primas espalhadas por Minas e São Paulo seria a solução, já que não tínhamos telefone. Desenhei os convites, subscritei os envelopes e levei tudo para o correio, isto com várias semanas de antecedência. Minha mãe costurou para mim um vestido cor-de-rosa clarinho, simples e bonito. E eu ganhei uma sandália nova, a primeira com um saltinho baixinho.

No dia do meu aniversário, chamamos uma manicure em casa, que fez pela primeira vez na minha vida as minhas unhas das mãos e dos pés. Tia Ruth estava desde a manhã conosco, nos ajudara nos preparativos. Bolo todo enfeitado, salgadinhos e doces, uma mesa bonita. Eu vesti meu vestido novo, passei o batom da minha mãe. Todos em traje de domingo, esperávamos juntos na sala que os convidados chegassem para começarmos a festa, marcada para as 18h.

Esperávamos e esperávamos! Até que o som estridente da campainha me fez correr para abrir a porta, exaltada e feliz, talvez fosse minha querida prima Cora, de Juiz de Fora, pensei. Tive que conter meu desapontamento e vergonha ao deparar com a manicure que trazia uma rosa vermelha na mão para me parabenizar. Minha mãe a mandou entrar e eles cantaram os parabéns.

Não apareceu mais ninguém. Nunca recebemos respostas daquelas cartas-convites. Fingi estar alegre e feliz para que minha mãe não ficasse mais triste do que, com certeza, já estava e, como eu, não deixava parecer. Neste dia descobri o poder que fingir ser feliz tem! Nunca mais falei sobre esta festa fiasco. Com ninguém. Até agora.

Acabei não ficando muito tempo nos pacotes. Após alguns meses, o Sr Euclides me promoveu e eu passei a ser balconista no setor de perfumaria da farmácia, vendendo produtos de beleza. Fui até fazer cursos na Payot, na Helena Rubinstein e na Max Factor, e não havia quem vendesse mais do que eu!

Passados mais alguns meses, eu já com quinze anos, fui promovida a chefe da perfumaria, responsável pelos pedidos e organização dos produtos. Era a chefe de setor mais jovem de todo o grupo Araújo! Demais, não? Tenho certeza de que você se orgulha de mim. (Pode ver o sorriso nos meus lábios enquanto escrevo esta frase?)

Um belo dia toca a campainha do nosso apartamento. Minha mãe abre a porta e depara com meu pai carregando uma malinha pequena, tudo que havia restado de seus pertences. Veio para ficar.

Mas não ficou. Depois de algum tempo morando conosco, trabalhando num emprego qualquer, ele deu um jeito de que sua ainda amante do Nordeste, a Noa, viesse para São Paulo. E quando minha mãe deu conta disto, ela se separou definitivamente do meu pai.

Foi na Drogaria Araújo que conheci o Silva. Um balconista do setor de remédios bem mais velho que eu. Começamos a namorar. Namoro sério. Meu primeiro homem. Que pensei ser minha salvação, mas não foi. Eu me salvei a mim mesma, quando aceitei o convite da minha tia alemã para ir morar no Rio de Janeiro, como você já deve ter lido no episódio “As muitas vidas de uma sessentona feliz”.

Nossa, ficou longo, este, verdade? Longo como a vida… Gostou? Quer mais? Você já sabe: lugar para os comentários tem ali embaixo. Ou um direct no Instagram. Vou ficar feliz. De verdade.

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30 comentários
  1. Adorei! Me senti ali, na esquina da cardoso de melo com a TuriassÚ. As nossas historias podem ser diferentes mas carregam semelhanças,
    sempre. A tristeza da sua mãe e a sua sensibilidade de fingir felicidade. Me emocionei. CONTINUE escrevendo Susanne!!

  2. Suzane , linda história de amor e realidade nua e crua…vida breve. vida que acontece e acontece…. Nunca sabemos ao certo o destino mas deve-se acreditar sempre no melhor. Acho que isso vc fez….bem… parabéns. Linda passagem terrena A sua. Saudações. Victor Cosmo Campinas, 69 anos seu seguidor e admirador de sua performance Vital. Bjs ??? salve ?

    1. Relembrar o passado É reviver de camarote. Sempre cuidando para não deixarmos o presente passar em branco! Obrigada querida!

    1. Me vejo ainda de cabelo bicolor e cheia de espinhas no rosto, muito orgulhosa por saber como usar menos papel possível… Ha!

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