Passinhos miúdos moviam aquele corpo magro e ágil, apesar da idade já avançada. Voltava do pátio com os braços cheios de roupas de todas as cores e tamanhos. Depositava as peças todas em cima da mesa, voltava ao pátio e recolhia o restante, repetindo a mesma ação.

O frio lá fora não congelava aquelas mãos trêmulas, a organizar as roupas, em pé, à frente do fogão a lenha. Dona Rosa era simpática, mas algo nela não combinava com o resto. O olhar passava para além da roupa que, depois de classificada por peças, ela passava com pouca destreza. Enquanto o ferro de passar ia e voltava, fazendo zigue-zague nos botões da camisa, ela seguia olhando para o nada, quase um robô.

Calada como o frasquinho que carregava no bolso do casaco, dona Rosa estranhamente tinha muito carinho por uma das crianças da casa, ignorando todas as demais pessoas. Por que aquela mulher já na casa dos 70, com filhos em excelentes condições financeiras, morava com estranhos? Os donos da casa a tratavam com respeito e carinho, mas sempre ficavam tensos em dias de festa, quando era comum drinques, vinho ou cerveja. Que estranha relação era aquela ?

Rosa juntou as poucas roupas que tinha, sentou na cama e ficou ali com o olhar estancado em algum ponto que ninguém conseguia enxergar . O que havia lá? Seriam lembranças ?

Naquela manhã o filho de Rosa foi até o quarto dela e sussurrou palavras que ninguém ouviu. Do nada para lugar algum os olhos dela não se moviam, enquanto lágrimas e palavras incompreensíveis saiam entre soluços. Era um sábado e a velha mulher pegou uma mala rota, atravessou o corredor e a varanda, parou como um brinquedo sem corda, abraçou apenas a menina que gostava e a pessoa da casa com quem conversava e sorria. Balançou a cabeça em sinal de despedida para a mãe das crianças. Ouviu do dono da casa algo como apareça sempre e balbuciou um obrigada por tudo. Moveu-se a passinhos miúdos, carregando aquele corpo magrela e cabeleira vasta.

No quarto já vazio, ainda cheirando a sabonete de limão de Rosa, a dona da casa retirou pequenas garrafas vazias de dentro do roupeiro e outras ainda sem abrir. Eram de vinho barato. Depois daquele sábado, nunca mais os anfitriões de Rosa a viram e raramente tinham boas notícias dela.

Em uma sexta à noite, fria e sem estrelas, o filho da velha mulher ligou para o casal de amigos para avisar que ela havia morrido. Rosa, que não era suportada nem pela nora e tampouco pelos netos havia partido da vida deles sem nada dizer, sozinha. Havia cansado do abandono, cansado do vinho e de todas as outras bebidas que prometiam fazê-la esquecer quem era, esquecer o abandono.

A mulher que durante meses havia hospedado dona Rosa desligou o telefone e sentiu um misto de dor e alívio. Ficou ali, com o celular na mão, sem dizer uma só palavra, lembrando daquela mulher frágil e de olhar distante. A voz da filha a trouxe de volta: -Mãe, dona Rosa morreu de quê?
Morreu de preconceito, sussurrou a mulher.

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9 comentários
  1. Que texto forte. Bem escrito, conciso e capaz de passar as emoções que brotam de forma natural. O abandono é uma das mais duras consequências do preconceito. No caso da Rosa, a morte fisica foi aos poucos, mas nem sempre é assim. O que fazer para mudar? Mudar a quem?

  2. Tantas Rosas perdidas em quartos vazios! Tantas Rosas nas esquinas, nas ruas, nas casas de quem não é do sangue! Que possamos estender mais a mão para tantas Rosas perdidas por ai e ensinar a dizer não ao preconceito. A cura do alcoolismo começa pela aceitação da família e da sociedade. E ela começa pelo amor.

  3. É muito mais comum do que se pensa, filhos, filhas, noras, genros rejeitarem a presença do idoso em suas casas, abandoná-los em lares para idosos, esquecendo que foram os pais que lhe deram a vida é cuidaram até que pudessem andar com as próprias pernas. Esse é o tipo de preconceito mais doloroso para o ser humano: o preconceito coma “velhice inservível “. Tem um comentário do Pe. Fábio de Mello que expressa exatamente essa ideia:
    https://youtu.be/VGIuYIk-TtU

  4. O pior abandono é o que acontece com pessoas em volta, porque é dos afetos do que se trata. Todos nós precisamos de humanidade para sentirmos o pertencimento desde mundo em nós. Um abraço, uma palavra de carinho, um olhar afetuoso podem mudar o rumo da vida e não custa nada. Somos seres sociáveis pela natureza da criação e precisamos do amor sereno e verdadeiro para vivermos até o dia que voltaremos a pátria celeste. Sem amor vamos desencarnando aos poucos. Belo texto devinha querida.

  5. É muito triste, mais o preconceito, é uma realidade. Assistimos a essa cruel situação, com mais frequência, que gostaríamos. O seu texto Deva, me fez lembrar, uma
    situação bem próxima, com alguém muito querida, passando por condições semelhantes, a Da. Rosa. E pensar, quantas Da. Rosa, existem espalhadas, por esse mundo afora!

  6. Deva que texto lindo mas triste! Para amortecer a dor do abandono Rosa bebia: triste e deprimida. Onde estão os filhos e netos? Quantas Rosas existem por aí?
    Meus velhos sempre estiveram comigo e eu com eles: meus pais, meus avós, minha bisavó! Aprendi com eles a gostar dos mais idosos. Triste preconceito que acaba com nossos antepassados. Parabéns Deva pelo belo texto. Entendo pq D. Maria e seu pai foram longevos

  7. Esse preconceito é muito presente nas famílias. Acolher entender e ajudar pessoas acometidas pelo alcoolismo deveria ser o padrão familiar. Mas infelizmente poucos são os que estão dispostos a ajudar. Em sua grande maioria morrem nas ruas anonimamente.

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