Tirei os tênis, coloquei ao lado de alguns tocos que formavam um muro. Senti o geladinho da areia úmida pelas ondas que se despediam do mar no colo da praia e caminhei um bom trecho, respirando os cheiros e sentindo o vento da manhã me beijar insistentemente. Desta vez não fui até onde a água cobrisse meus joelhos: ela estava gelada – aliás bem gelada como costuma ser no Sul do Brasil, especialmente na primavera, quando o vento anuncia chuva ou baixa temperatura. 

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Avistei um tronco e ali sentei. Fiz meu agradecimento por aquela vastidão de água, sal, céu e vida que invadiam meus olhos serenamente e banhavam de paz meu corpo e alma. Nesse momento pensei no meu filho Fernando (Xis) e agradeci  por ele ter me ensinado como olhar o mar, sem medo. Ele sabia tanto de mim e do mar, que deixou pistas de como estar com ele. Simplesmente vou até o mar, sento, medito e sinto o abraço dele atravessar o mar e chegar à praia quicando nas ondas. O mar me abraça, mas ele é apenas meio. O mar é uma espécie de servidor da internet: é o meio que carrega o abraço dele, desde o outro lado, no horizonte. 

Então, com aquele abraço, sentei à areia, fechei os olhos e relembrei os momentos mágicos em Gili Trawangan, uma das três pequenas Ilhas Gilli (também chamadas de trigêmeos), que formam um arquipélago na costa noroeste de Lombok, na Indonésia. Além de Trawangan  tem a Gilli Meno e a Gili Air. Se você acha que o paraíso naquele país é Bali, esqueça. Com certeza é Gilli Trawangan. Claro que essa ideia de ir para lá não partiria da minha vontade, pois uma  viagem em um barco que pula ondas imensas em alto mar e fede a gasolina, certamente não estaria nos meus planos, por mais que eu seja aventureira. Mas, estava na cabeça do Fernando para quem aquele barco pequeno e aquelas ondas não eram obstáculos, especialmente depois de tantas idas a lugares mais remotos, entre eles 

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Naquelas férias, além de Bali, Gili Trawangan era o segundo lugar onde passamos dias banhados de sol, com gente de bom papo e novidades em cada esquina. Numa espécie de pracinha do local, ouvimos alguém lembrando nas caixas de som espalhadas nas redondezas a hora do Salat, conjunto de orações muçulmanas feitas diariamente em diferentes horários. Pára tudo. Hora de cumprir com o Salat, um dos pilares do Islamismo. Claro, os turistas e locais não muçulmanos seguiam especulando as tendas, pedalando e tomando suas cervejinhas. Havia um burburinho de risos e conversas em diferentes idiomas, pois ali tudo era, ao mesmo tempo, um mundo à parte do resto do Planeta e também uma reunião de almas vestidas de gente de várias partes do globo. O objetivo era um só:  ser feliz e aplaudir o pôr do sol. E nós – Fernando, eu e amigos conspiramos para que aqueles dias fossem os mais incríveis. E foram.  

 Um barquinho deslizava e o menino corria frenético acompanhando o brinquedo

Tudo me encantava e ao mesmo tempo me levava a confirmar: só o Xis mesmo para me mostrar uma parte do mundo que sequer algum dia havia cogitado. E lá estava eu, admirando a massagem que os peixinhos faziam nos pés das turistas, que mergulhavam pés e um pedaço das pernas em tanquinhos com água e pequenos peixes famintos de sujeirinhas da pele humana. Na verdade, em muitos momentos eu não sabia se fotografava ou se ficava curtindo o vai e vem das pessoas, das crianças brincando à praia. 

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Um barquinho deslizava nas ondas e um menininho tentava controlar o brinquedo, em corridinhas frenéticas de um lado para outro. Fernando comentou algo sobre o menino e o barquinho. Ele sempre achava aquelas brincadeiras interessantes e quanto mais simples fosse uma criança, mais ele admirava. Um dia, recebi um e-mail dele com uma foto de uma menininha balinesa, filha de um amigo. E dizia algo como: “pobrezinha, mãe, ela sempre pede para sair nas fotos”. Meu filho era o que chamamos de crianceiro, aquele cara que não me deu netos mas deixou um afilhado e uma afilhada lindos (Felipe e Mariana) e filhos de amigos que possivelmente não vão esquecer do Xis, entre eles Martina e Theo.

“Mãe, tu podes conhecer toda Gili Trawangan em um passeio de duas horas, de bicicleta”” me informou ele que sempre tinha informações preciosas de pontos turísticos e os menos prováveis de serem turísticos, mas que encantavam. Preferi caminhar com ele e a turma.  Nem preciso dizer que, assim como em Bali, eu continuava acompanhada de uma meninada super bacana: brasileiros e duas meninas canadenses que se enturmaram desde a pousada em  Ayu Guna Inn.  Noites de passeio na única e movimentada “avenida” de chão batido, comida local e, à exceção de quem narra essa história, todos caiam nas festas, embalados pela contagiante alegria e pique que têm os jovens, especialmente quando em lugares tão cheios de luz e paz. 

Nada de assaltos, nada de trânsito, nada de atravessar a cidade para voltar para casa. Eu ficava na pousada, lendo até o sono chegar e, bem cedinho, antes mesmo do Fernando voltar, acordava com o primeiro Salat do dia. 

Toda essa delícia de passeio, incluindo a tentativa do Nando de me ensinar a mergulhar e acompanhar uma imensa tartaruga em seu passeio matinal estavam delicadamente guardadas num arquivo especial, aberto assim que recebi o abraço que o mar me trouxe, sentada naquele toco de árvore, na Praia do Sabão, no Campeche. Os nativos do surf sabem que este local é um dos pontos para o esporte na mágica Florianópolis (SC). 

Continuei sentada na praia, me permitindo mais um pouco das lembranças de Gilli e da terrível travessia de volta a Bali. Se a viagem de ida havia sido banhada em cheiro de gasolina e pulos do barco em ondas grandes, a de retorno não poupou os tripulantes que saíram direto da última festa na ilha de Gili Trawangan para o barco – caso do Fernando e de uma menina inglesa. As mais de duas horas naquela embarcação lotada deixaram os dois muito mal. Tanto que um dos barqueiros decidiu jogar ao mar uma oferenda e falou para a inglesa que deitasse no chão. Segundo me disse meu filho, as flores jogadas ao mar pelo homem que ajudava o “capitão” eram para acalmar as ondas. Até hoje penso que o ajudante estava aflito com dois passageiros passando mal. Eu, então, não tinha mais palavras e não conseguia parar de rezar e pedir que aquela moça e meu Xis melhorassem. 

Conseguimos chegar ao porto de Lombok, completamente zonzos. Eu estou com medo e Xis quase desidratado. Eu de pernas bambas e ele à procura de um banheiro.  Entre enjoos e outras coisitas, saímos bem, apesar de eu ter ficado em pânico com a brancura e quantidade de suor do Fernando. 

Ao pegarmos um táxi até a pousada, o taxista recomendou que ele fosse para o hospital. O homem estava assustado e eu mal conseguia pensar. Fernando sentenciou: ” nem pensar. Hospital aqui de jeito nenhum” – enfatizou ele em uma frase que anos depois lembro como uma daquelas ironias da vida, pois foi um médico de Bali o único a dar o diagnóstico sobre o tipo raro de linfoma que ele teve e nenhum outro profissional, nem na Austrália (onde morava) e tampouco no Brasi. E lá fomos nós rumo ao hotel. Uma soneca do porto até a pousada, muita água e uma outra soneca até o cair da noite, em uma cama confortável, e o Xis já estava pronto para encarar a noite na Ilha de Bali. Tomou banho esperto – com água fria, claro, jantou um prato gigantesco à balinesa e estava novamente 100%. 

Minha viagem a Gili Trawangan acabou quando abri os olhos e percebi que já havia recebido o abraço do dia, que certamente há Gillis do outro lado do mar, na atual morada do Fernando.  

Sim, o mar sabe que é um potente provedor a me trazer abraços, a me levar em pequenas viagens no tempo, tempo agora muito diferente do tempo marcado pelos calendários e relógios. Ele, o mar, tem o provedor, o tempo e o caminho para que eu possa viajar um pouquinho e, novamente, encontrar o Xis nas praias que ele mais gostava. Respirei fundo e retomei o cotidiano, agradecida por ter tido oportunidade de ser abraçada pelo mar e por ter aprendido o valor dele com Xis. 

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10 comentários
  1. Acostumei a te deixar no meio da caminhada junto ao mar, quando encontras um lugar pra ficar enquanto eu sigo pelas bordas onde batem as ondas. Vou e volto e estas ali no mesmo lugar, fitando o mar. Nao sabia o que te passava pela mente, embora intuisse que era o teu momento mágico de conversar com o nosso amado Nando. Obrigado por nos dizer um pouco do que te faz animada a viver o hoje, continuar firme a nos presentear com textos lindos como este. Agora sei o que acontece quando bem de longe vejo aquele pontinho na frente da praia, minha bússola de retorno. É a minha pretinha achada em seus pensamentos vigorosos e vivos, combustível para abrir o livro da vida e contar suas histórias. Obrigado meu amor.

  2. Que viagem linda me proporcionaste, que abraço teu menino te deu… senti tudo, lagrimei de saudade de quem não conheci e pisei naquela areia que nunca conhecerei.
    Belíssimo texto, linda declaração de amor, fantástico sentimento que expõe mesmo diante de tamanha perda.
    Obrigada, Deva, por nos ensinar a sermos melhores.

  3. Você teve a bênção de uma vida com Fernando! A finitude é presente e nos é ofertada como uma dádiva! As lembranças sao o papel lindo com o qual Deus nos oferta esse presente que é a vida!

  4. Maravilhosa crônica….o amor de mãe que deságua no mar da saudade se perpetua em cada sol que beija as ondas …deixa na gente a certeza de que a vida continua do outro lado do caminho. Beijo grande, Deva.

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