Havia decidido que algo teria que mudar naquela minha vida no paraíso (“A dor da perda”). Vivíamos sempre com problemas de dinheiro. Não por gastarmos mais do que ganhávamos, mas por não ganharmos o suficiente para termos uma vida normal. Quantas vezes ficávamos sem ter sequer o necessário para fazer as compras de alimentos no mercadinho do povoado! Aquele que teria sido o pai do meu filho estava se mostrando cada vez menos habilitado a ter uma renda para sustentar-nos.

Ainda hoje acho difícil de entender o fato de que eu, na época, nos fins dos anos 1970, mulher de quase 30 anos, tendo já sido bem-sucedida profissionalmente, sentisse necessidade de ser sustentada por um homem. Mesmo tendo vivido mais de três anos na Alemanha, conhecido uma cultura muito diferente da nossa, onde as mulheres são muito mais independentes.

Deixara uma próspera carreira como publicitária na Alemanha (“Nada é impossível, basta querer”), abdicara de uma excelente posição naquela empresa representante de grandes magazines internacionais em São Paulo (“Nem o paraíso é perfeito!”). Nada disso foi suficiente para apagar o que me foi enfiado na cabeça a vida inteira pelo meio social em que fui criada. Ter experimentado o sucesso profissional não foi o bastante para fazer de mim uma mulher feliz e realizada. Faltava um marido protetor, uma família para cuidar. Isto sim teria significado realização pessoal para mim, na época.

Praia

Carioca era muito carinhoso, muito atencioso, mas incapaz de suprir minhas ânsias, pois faltava a segurança material. Seria… por falta de instrução ou efeito da maconha? Antes de ir viver em Baía Formosa, exceto aquela tarde no apartamento do Saulo, aos vinte e poucos, (“Mulher competente, coração infeliz”) eu nunca havia tido contato com drogas.

Até aquele domingo, quando volto de um longo e solitário passeio na praia. Vejo mochilas na varanda da casa. “Carioca, onde você está?”, chamo. Nenhuma resposta. Vou casa adentro à sua procura, para encontrá-lo no banheiro com um casal que eu não conhecia. A porta semiaberta, o espelho da pia retirado da parede e colocado em cima do vaso sanitário.

Algumas linhas de cocaína sendo preparadas para o consumo. Num reflexo, dei um pontapé no espelho, que foi ao chão, em mil pedaços. “Fora! Todos, fora! Não quero mais te ver, Carioca. Junte suas coisas e saia já da minha vida!”

A última coisa que eu queria agora seria que o Carioca tivesse mais um vício! O casal foi embora imediatamente, não sem antes pegar suas mochilas que haviam ficado no terraço. Fiquei firme na minha decisão e fiz questão de que Carioca juntasse suas roupas e saísse imediatamente da nossa casa. O que ele realmente fez, meio atordoado e provavelmente sem entender como eu, que sempre era tão meiga, poderia ser tão violenta e decidida.

Passei dias vendo Carioca dormir na sua rede nos terraços das casas de veraneio vazias da orla da praia. Todos os dias ele deixava na nossa varanda mangas que colhia nas árvores, peixes fresquinhos que ganhava no porto e flores que colhia nas matas, sempre acompanhados de bilhetinhos, pedindo perdão e querendo conversar. Cedi. E, após sua promessa de nunca mais cair em situação parecida, Carioca voltou para nossa casa. Tê-lo mandado embora havia sido uma lição para Carioca, e não o fim do nosso amor.

Durante os dias em que passei sozinha em casa, tive tempo – e uma intensa necessidade – de fazer planos para o nosso, sim, o nosso futuro. Decidi tomar as rédeas da situação, já que Carioca não era capaz de tanto. Apesar de tudo, eu acreditava que ainda poderia ser feliz em Baía Formosa.

Ao lado da nossa casinha de pescador, uma outra havia ficado vazia e posta à locação. Minha ideia: fazer dela uma pequena pousada. Uma pousada minúscula, pois a casinha comportava somente três cômodos e um banheiro. Seria a única pousada na beira da praia, pé na areia mesmo. E seria muito, mas muito singela e especial. Com uma anfitriã que falava três línguas! Carioca adorou a ideia!

Com ajuda de uma mulher de João Pessoa, com a qual eu tinha feito amizade, que nos emprestou o dinheiro necessário, conseguimos alugar a casinha. Junto com amigos, que trabalhavam fiado ou de favor, Carioca construiu camas, prateleiras de madeira, fez reformas e consertos na casa. A casinha foi pintada de branco com portas, janelas e adornos em um amarelo vivo. Um lindo contraste com o céu, que era sempre de um azul intenso.

Quando passeávamos pela praia, juntávamos conchinhas. Carioca fez com elas várias correntes de conchas, num trabalho que levou muitas horas! Estas foram usadas como cortinas nas janelas dos quartos, muito originais. Enquanto isto, eu, juntando todo o dom que tinha para desenhar e pintar, fiz várias placas de madeira, em forma de setas. Estas foram distribuídas em lugares adequados, inclusive nas rodovias próximas, indicando a direção a seguir até a: “Pousada da Praia”.

O único banheiro, muito simples – não, mais simples ainda do que você acaba de imaginar – era de uso de todos os hóspedes. Eu precisei de muita imaginação para fazer deste cômodo um lugar de uma beleza muito pitoresca, usando conchas enormes de diversas formas, samambaias e objetos de barro como decoração. Uma pia pequena, uma latrina e um grande tanque feito de cimento, que ficava sempre cheio de água fresquinha e fria eram os “móveis”. Não havia chuveiro, tomava-se banho usando a água do tanque e uma cuia de abóbora seca. Banho de cuia com água fria num dia quente, ah! Que saudade…

Cada hóspede ganhava, ao chegar, uma bucha vegetal embalada com muito carinho e com uma fita amarela, a mesma cor dos adornos da pousada. Eu cortava cartõezinhos de cartolina amarela clarinha, desenhando algum objeto típico da região, fosse um peixe, uma jangada, ou um coqueiro, escrevia com letras bonitas o nome da pousada e colocava-os dentro da embalagem, com as palavras: “Bem-vindo ao banheiro dos seus sonhos…”. Um charme, como todos diziam.

Os cafés-da-manhã eram oferecidos na sala da nossa casa: cuscuz com leite de côco, queijo de coalho frito, tapioca com côco fresco ralado, frutas exóticas da região, ovos fresquinhos preparados de acordo com o desejo de cada um, vitaminas de frutas feitas na hora, a gosto dos hóspedes. Os jantares eram oferecidos em “luaus” na areia da praia. No cardápio sempre o pescado do dia, muitas vezes embalado em folhas de bananeira, mas sempre assado na brasa, legumes e pirão fresquinho. E, de vez em quando, a legendária salada de batatas do Carioca, com cebola. Lembra? (“Como conheci meu surfista ‘Carioca’”)

Os primeiros hóspedes foram dois franceses, que acabaram por ficar quase um mês, pois fascinados pela beleza do lugar e pela nossa peculiar hospitalidade. Carioca os levava em passeios para conhecer toda a região e para o azul intenso do oceano, com sua jangada. Ao pagar a conta, deram-nos o dobro do que havíamos pedido. Vale mencionar que eu, anos depois, fui a Paris com uma amiga e ficamos hospedadas na casa do tal francês, o Marcel.

Sucederam-se outros hóspedes. Alemães, argentinos, paulistas, cariocas, baianos. Todos adoravam passar um tempo assim, vivendo, junto conosco, uma vida muito simples.

Uma família com duas crianças pequenas alugara todos os quartos. Mas anteciparam a despedida, quando numa manhã, uma aranha caranguejeira foi encontrada na cama da criança menor. A mãe ficou horrorizada e fez questão de prosseguir viagem.

No quintal da casa havia um bananal, habitat ideal para aranhas. Quando chove muito, chuvas tropicais e passageiras, as bananeiras ficam encharcadas de água e as aranhas procuram um lugar seco. Quantas vezes as tínhamos dentro de casa! Grotesco, mas Carioca tinha imenso prazer em jogar álcool na aranha que achasse lugar na nossa casa, e logo após um palito de fósforo aceso. Desde que isso fosse possível sem haver perigo de incêndio, claro. Mas aquele fogo azul correndo desesperado por alguns minutos pela casa o fascinava. Eu tinha pena da aranha e não gostava nada de ver aquilo.

Estávamos sentados nas almofadas da nossa sala à noite, junto com nossos hóspedes, tomando caipirinha. Carioca, que voltava da cozinha com um copo cheio de gelo, tirou seu chinelo e disse a um dos hóspedes: “Não se mexa! Tenha calma, fique exatamente como está!” Deu uma chinelada bem próximo à cabeça do tal hóspede, que parecia petrificado. “Esse não pica mais ninguém”, diz Carioca. E quando nós olhamos para o chão ao lado do rapaz em questão, lá estava aquele escorpião enorme, morto. Motivo de muita conversa, durante muito tempo. Escorpiões não apareciam com muita frequência, e suas histórias eram sempre contadas com emoção.

Eu não tinha realmente medo desses bichos. Mas se existe uma coisa da qual eu tenho pavor: baratas! Talvez mais um motivo pelo qual eu gosto tanto da Alemanha: aqui não existem baratas… Sabia?

O sucesso da nossa pousadinha causou inveja. Uma inveja que foi muito cruel. E eu vou te contar sobre tal numa outra oportunidade, porque este episódio aqui acabou ficando longo. Deixe lá nos comentários se você quer ler mais o que tenho a contar. Só assim eu fico sabendo se estou no caminho certo. Te agradeço.

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30 comentários
  1. Gente essa pousada devia ser um mimo só!!! EnTão esse é o carioca do inicio da história não é? E que inveja foi essa???? BEijos amiga!

  2. Ainda bem que vc é decidida e criativa,imagino. Maravilha de ter os pés na areia o mar a simplicidade sem grandes preocupações,um chama essa pousada…

    1. Imagino! Deve estar ima beleza! Nos lutamos tanto na esperanca de levar o turismo para lá! Obrigada por me acompanhar aqui, querida!

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