Um dia acordamos e nossos filhos não precisam mais da nossa ajuda com o café, com o uniforme, o lanche da escola, as tarefas de casa, as caronas, não nos procuram como antes, quando tudo parecia estar concentrado na palma das nossas mãos. Despertamos solitários, dependentes ainda do ofício cuidador que espremeu nossos quereres na vida de pais, na responsabilidade das decisões, nas preocupações, agora confusos, diante da oferta de uma liberdade com a qual sonhamos secretamente durante todos esses anos.

Recobrar a lembrança do que éramos antes deles, seres únicos, não é fácil. A vida acontece e nos transforma, irreversivelmente, tantas e tantas vezes, fragmentando o nosso elemento em versões inclinadas sobretudo à servidão de expectativas que não as nossas. A maternidade converte não só a nossa essência, mas a engrenagem do que nos dá prazer, o que nos traz felicidade, satisfação, insatisfação. E quando lentamente voltamos a nos priorizar, libertos também do controle do ninho, percebemos que o medo de não nos reconhecer mais- despidos da pele que vestimos com tanta dedicação- só não é maior do que a preguiça da necessidade urgente de serem reconfigurados os novos papéis dentro do par. Descobrir afinal o que sobrou- e  nasceu- desse casal sobrevivente da falta de tempo.  

Enfrentar a poeira que foi empurrada para debaixo do tapete e a realidade aumentada de uma intimidade que esteve restringida aos intervalos, às brechas, e ao silêncio, requer uma boa dose de ânimo. Somos naturalmente acostumados ao conforto do “deixa pra lá”, apesar da propaganda e cobrança diárias da tal nutrição romântica. Decidir se a parceria continuará valendo a pena, se acompanhará as transformações das partes, ou ruirá, definitivamente, após a emancipação dos filhos, é um grande desafio para a monogamia longa. Encontrar um futuro comum onde possam se encaixar, harmonicamente, as novas peças de cada lado.

Será possível recuperar o fio solto da meada? Ou pelo menos uma maneira segura e viável de não perdê-lo no percurso, mesmo que esgarçado, durante os momentos mais críticos, quando pensamos não haver mais elo, desejo, distraídos pela correnteza do ônus dos acontecimentos? Estaríamos nós, náufragos dessa instituição falida, negligenciando a determinante “poupança” da longevidade conjugal? 

Minha mãe costumava comentar com certa curiosidade o caso de uma amiga, professora como ela, que reservava toda as quartas-feiras para jantar fora com o marido. Eles juntos tinham seis filhos e raramente desmarcavam esse encontro semanal, valorizadíssimo pelos dois (a preservação da estreiteza dos laços, isso entendemos bem desde quando observávamos os nossos pais). Mas não era esse o tempero surpreendente dessa história. O que intrigava suas colegas de trabalho, na época, era o fato dela também ter escolhido um dia da semana para ir no cinema sozinha, para onde corria logo depois da escola, satisfeita da melhor companhia, procurando no jornal resenhas dos filmes em cartaz. Sábia. Não abriu mão de manter-se inteira. E eu penso nela até hoje, nas oportunidades que tive de seguir o seu exemplo e não o fiz, sabe-se lá porque, presa na promessa do amanhã, contando com a sorte do levar dos anos.  

A vida nos prende no “quem sabe amanhã” até que alguma ruptura aconteça. Filhos que voam, pais que morrem, amores que expiram, sonhos que florescem, uma grande tristeza, uma grande alegria, e a verdade é que deveríamos temer menos os nossos recomeços. Porque essa é a graça. Ainda que assustadoramente desafiador, tudo é ponto de partida.          

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3 comentários
  1. Ao contrário da imensa maioria de minhas amigas não chorei litros quando meus filhos se foram , não me debulho em lágrimas ao ver seus quartos vazios ! A criação deles foi difícil pois perdemos mãe e sogra muito jovens e trabalhando muito ,dependemos a vida toda e babás e empregadas e passamos por muitos perrengues de ter que se fingir doente e implorar um atestado pois não tinha com quem deixá-los ! Amo meus filhos que hoje moram juntos e são dois universitários USP E FAAP da mesma forma e os ajudo e auxilio mas agora tenho a liberdade de volta e quero aproveitar pois não sei ainda quanto tempo me resta nesta vida ! Não serei aquela senhora abdicada de avental que passa o domingo na cozinha para fazer aquele almoço todos os domingos para familia ! Vamos todos comer fora e celebrar a vida !

  2. Embora eu não tenha sofrido nada semelhante com a deixada do ninho pelo meu filho, muito pelo contrário: senti-me liberta de obrigações, livre, leve e solta, acredito que tal momento seja difícil para muitos. Como sempre, amei seu texto, escrito com muito zelo e emoção. Vale cada letra. Obrigada!

  3. Quanta delicadeza e verdade nesse texto lindo que vc nos presenteia. De fato, antes de sermos filhos, casal e/ou pais, nós somos indivíduos que muitas vezes deixam a sua essência de lado para vivenciar essa pluralidade e acabamos nos perdendo de nós mesmos.
    É preciso saber viver e antes de qualquer coisa, amar a si mesmo.

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