Esse tema permeou minha vida de muitas formas, algumas delas, durante os atendimentos psicológicos e no trabalho em escolas com crianças consideradas agressivas. Invariavelmente, essas crianças sofriam situações de agressão doméstica e por isso a reproduziam no ambiente escolar. Outras formas, durante minha vida pessoal incluindo familiares e amigas próximas. Os abusos psicológicos e físicos, são muito mais comuns do que podemos supor. A série “Maid” foi indicada por duas pessoas que atendo e sensibilizou muitas outras que puderam identificar aspectos pessoais. Mas ainda apareciam dúvidas e interpretações equivocadas, por isso considerei a importância de escrever sobre ela.

Não sou de maratonar série, mas essa me tirou o fôlego e me fez madrugar na frente da TV. Pela quantidade de questões muito densas relacionadas ao universo feminino e pela maestria com que são abordadas. Violência doméstica, abuso psicológico, transgeracionalidade, abandono parental, dependência química, desamparo jurídico, doença psíquica, são alguns dos temas que me trouxeram às lágrimas.

Maid

Alerta, o texto contém spoiler, não é possível evitar. Se preferir, pode assistir antes de continuar a leitura, mas garanto que nenhuma palavra superará a experiência de acompanhar a jornada da protagonista Alex. A séria trata da violência dentro uma relação hetero cis, identificando o agressor como homem e a vítima como mulher, embora mais comum, as relações de violência nem sempre seguem esse padrão.

Alex, a protagonista, decide fugir com a filha de dois anos após mais um episódio agressivo do companheiro Sean. Busca por apoio do governo e começa a encarar uma grande burocracia e o dilema de denunciar o pai de sua filha para conseguir abrigo e benefícios para mulheres vítimas de violência. No entanto, não consegue entender que era vítima de violência e nem concretizar a denúncia. Pois, considera como violência apenas a agressão física. Embora não tenha marcas físicas, seu companheiro quebra objetos em sua direção e profere golpes que passam perto, e esse é um comportamento ameaçador, mostrando a dominação através da força, da explosão. O que leva a mulher a silenciar e se acuar por medo de provocar tais reações e de suas consequências.

Nenhuma relação começa violenta, nenhum agressor vem com a tarja de identificação na testa. As relações começam com paixão, sedução e depois vão se transformando, Alguns controles, que podem ser mais sutis ou não, acabam sendo aceitos e a relação de dominação vai aos poucos se instaurando.

Maid

No ciclo da violência doméstica, as agressões verbais baixam a autoestima das mulheres, a culpabilizam. A pessoa que pratica violência, também expõe sua própria fragilidade e compensa de outras formas, como apoio financeiro, presentes e declarações de amor, por vezes, prometendo mudança. Chamamos essa fase de enamoramento ou lua de mel, a fase que as agressões sessam, a mulher aposta na relação e o ciclo recomeça. O que também não é uma mentira, muitos abusadores, foram vítimas de abuso e criados dentro de uma cultura machista, e assim, reproduzem e naturalizam esse comportamento. Quebrar ciclo que transpassa por gerações de abusadores e vítimas de abuso, não é tarefa fácil.

Ao sair de casa, Alex se depara com inúmeras dificuldades, perdeu sua autonomia financeira, abandonou seus sonhos de ir para universidade. Não consegue apoio familiar substancial. Questiona-se e recebe aulas sobre como um lar desfeito e quebra da rotina, afeta a saúde mental dos filhos. Todas as decisões são difíceis, são muitas pressões e desafios, mas ela luta.

O trabalho como faxineira, não traz ganhos suficientes para manter minimamente a qualidade de vida sua e da sua filha, que chega a adoecer pelas más condições de sua moradia e ela se vê pressionada por profissionais da saúde, da creche a ser uma mãe melhor. Além de se preocupar com o sustento e saúde da filha, precisa preencher papeis, conseguir testemunhas e apoio jurídico, e lutar pela guarda da filha. Sem amparo, perdida, sob pressão e emocionalmente abalada, acaba tomando muitas decisões equivocadas.

No abrigo de violência doméstica, uma colega decide ajudá-la a recuperar a guarda da filha. Alex está sem forças e Danielle tenta puxar de dentro dela a capacidade de fúria e indignação para continuar a lutar. O que também é um aspecto comum nas vítimas de abuso psicológico, as constantes agressões vão minando a capacidade de reagir e se proteger de injustiças e ataques. E muitas vezes são exatamente julgadas por isso. “Mas ela não reage”, “É mulher de malandro”, “como alguém tão bonita ou inteligente não consegue sair disso? “São alguns dos comentários que ouvimos sobre mulheres que não conseguem romper o ciclo da violência. E muitas vezes os próprios filhos e familiares, culpam a mulher por sua submissão.

É importante ressaltar que a submissão a relacionamento abusivo não está relacionado a inteligência, muitas vezes o campo afetivo é que está comprometido e se sobrepõe a razão. Nem a dependência financeira determina a manutenção da relação abusiva, embora seja fator importante de autonomia e independência.

Maid

A própria mãe de Alex relativiza as queixas da filha e não apoia sua decisão de se separar, minimizando os motivos. E ao decorrer da história nos é revelado que a mãe, uma artista considerada excêntrica quando na verdade apresenta transtorno bipolar, foi também vítima de relações abusivas ao longo de toda sua vida. E ainda, acaba também sendo agressiva e negligente com Alex e sua filha, tanto por sua biografia quanto pelo seu transtorno, descarrega na filha sua raiva e instabilidade. O tema da mãe, daria um artigo a parte, mas são muitos temas complexos, e é preciso se fazer um recorte.

O pai de Alex, faz o mesmo, e a culpa por abandonar Sean “quando ele mais precisava dela”, sendo que ele mesmo se identifica com o marido da filha, tanto no consumo de álcool quanto no comportamento agressivo. E ainda pratica a negligencia, recusando apoio a filha, primeiro de abrigo (deixando ela e a filha dormirem em local público), depois de defesa contra a violência.

Esse é um aspecto importante, cerca de 92% das vítimas de violência doméstica presenciaram violência psicológica, física, sexual ou patrimonial entre seus pais e é muito comum que a violência chegue até as crianças também. A exposição á gritos e agressões faz que com a pessoa perca a capacidade de identificar e de se proteger das violências. Tanto a mãe da Alex quanto ela própria, decidiram fugir de casa após perceberem as consequências para as filhas. E é através do reconhecimento da situação doméstica de aprisionamento e violência de uma criança considerada infratora, numa casa onde Alex fez limpeza, que ela começa a entender sua própria história e recobrar memórias. Por isso a importância da série, e de se abordar esses temas, para que cada vez mais mulheres possam compreender o que vivem e se protegerem.

O estresses causado pelas relações abusivas, a falta de referência saudável faz com a mulher vá perdendo gradativamente a identidade e capacidade de pensamento crítico. A série mostra o apoio do abrigo para ajudar as mulheres a escolherem roupas, pois nem isso mais conseguem. Em momento extremo, Alex perde inclusive a noção do tempo, vítima de depressão e estresse pós traumático. Algumas mulheres ainda, internalizam as agressões e desenvolvem voz interna que as oprime, reforçando a ideia de que são inferiores, sem valor e não merecem ser amadas.

Nesse momento, decidi falar sobre o sentimento de inadequação e a baixa da autoestima, em especial. Abandonada pelo pai, sem suporte materno e muitas vezes agredida pela mãe, agredida pelo companheiro, negligenciada por todos ao redor, incluindo o governo, Alex está entregue a sua própria sorte, lutando para sobreviver, voltar a viver e poder oferecer outra vida para sua filha.

Em certo momento, Nate um conhecido, se aproxima, oferece apoio e se apaixona por ela, demonstrando muito afeto e cuidado. É generoso. Ela se encanta por ele, embora tenha dentro de si a determinação de que não quer depender de homem algum, e não quer que o apoio esteja vinculado a sedução, uma vez que as investidas dele são constantes e suas intenções claras. Em uma conversa, ela revela que não se sente a altura dele para um relacionamento, por toda sua condição de vida e familiar. Ele tem uma família unida, uma vida estável. Ela esconde dele os principais conflitos, talvez por vergonha. E acaba por magoá-lo, se entregando aos braços do ex companheiro violento após um surto de sua mãe. A generosidade de Nate acaba, e ele a manda embora.

Nesse momento, fica muito claro o quanto sua fragilidade a conduz para o lugar conhecido, para o ambiente onde tudo é tão desestruturado quanto sua vida. Lógico que nesse momento, Sean se mostra um homem amoroso e parceiro, conhece todas suas questões familiares e sabe oferecer apoio e se fazer necessário. No meio do caos, o companheiro também caótico parece o amparo ideal. O único que compreenderia todas os conflitos.
Também, as relações próximas repletas de tensão, podem fazer com que um amor calmo não seja reconhecido como amor. E assim, a reprodução transgeracional se consolida.

É muito comum na nossa sociedade que a mulher seja culpabilizada, as expressões cotidianas denunciam essa culpabilização, “é mãe solteira”, “não conseguiu segurar o marido em casa”, “tem dedo podre”, “abandonou a carreira pra cuidar dos filhos e deu nisso”, “não deu assistência sexual ao marido e ele foi buscar fora”, “engordou, lógico que não vai manter o casamento”. Além das exigência de perfeição, precisa ser educada, comportada, discreta, elegante, magra, malhada, poliglota, bem sucedida, boa dona de casa, boa mãe… São tantas exigência, que a mulher que se sujeita a atender a todas, sempre vai se sentir inadequada. Sendo inadequada, talvez mereça o mínimo. E é muitas vezes, nesse sentimento de inadequação que a submissão à violência ganha lugar.

Como é comum ouvir “mas ele me aceita como eu sou”, por trás de uma situação abusiva. E o próprio abusador alimenta essa baixa da autoestima “eu sou a melhor coisa que poderia ter acontecido na sua vida”, “quem vai querer você assim”, “você já está ficando velha demais pra conseguir outro relacionamento” e mesmo os aprisionamentos indiretos, mais velados, como privação de autonomia profissional e financeira, celular comum, ciúmes, afastamento de amigos e familiares. Isolada e abalada, a mulher perde cada vez mais a noção de quem é. Não sabendo quem é, fica sujeita a descrição do outro. Se é tratada como um lixo, talvez seja mesmo esse lixo.

Em hipótese nenhuma a construção cultural da dominação masculina sobre a mulher é descartada, mas se soma e colabora com o sentimento de inadequação e inferioridade. O indivíduo é um ser social. Toda ação para confortar essa mulher e empoderá-la é importante. Amparo econômico e afetivo, compreensão, valorização, autonomia, reconhecimento de suas qualidades e de que é possível voltar a acreditar em si mesma, na vida e se transformar. Com tempo, paciência, dedicação e cuidado. É possível ter recaídas e retomar o relacionamento abusivo, mas culpa-la e abandona-la por isso, só vai colaborar com o sentimento de menos valia e desamparo.

O apoio que não vem da família, vem da casa de abrigo, de Danielle, e em especial Regina, uma mulher bem sucedida financeiramente, sob a pressão de não conseguir ser mãe para manter o casamento, que a princípio é extremamente insensível com Alex e depois se aproxima dela, em especial após ler seus escritos, que ela mantinha em um diário. Regina é advogada e consegue oferecer apoio jurídico e informações sobre financiamento para que Alex retome seu sonho de estudar e fique com a guarda da filha.

Acompanhamento psicológico, grupos terapêuticos, apoio jurídico e apoio familiar são muito importantes no processo de rompimento do ciclo de violência. Reconhecer seus sentimentos e padrões, perceber que embora naturalizada em sua vida, a violência não é aceitável e é legítimo se defender. Toda forma de conhecimento sobre o tema, palestras, leituras, filmes, podem colaborar com a ressignificação da experiência.

Na série, Sean se reconhece como um abusador e vítima de abusos e não usa isso como meio de manipulação, depois de uma longa jornada. O que é fundamental, para que a pessoa que teve comportamento agressivo, não seja também rotulado de agressor e abusador, tendo assim a possibilidade de romper o ciclo de violência.

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8 comentários
  1. Excelente texto! Me fez vir às lágrimas… Estou em um relacionamento abusivo e estou lutando para sair! E é exatamente tudo o que escreveste! Parabéns pelo texto!

    1. Oi, Cláudia! Fico feliz que o texto tenha te tocado e ajudado a se reconhecer nessa relação. Sair de uma relação abusiva não é fácil, mas é possível e essencial! Apoio profissional pode ajudar bastante.
      Um abraço

  2. Uau!!… que venham mais textos como esse! De uma importância enorme para TODOS, inclusive para que possamos entender além do senso comum estereotipado sobre relações abusivas e suas várias formas de manifestação. Excelente ! Deveria ser explorado como parte de conteúdo educacionsl/es olar inclusive!De suma importância e relevância!…

    1. Herrera, com certeza o tema precisa ser amplamente discutido, pois o número de casos é alto e ainda subnotificados.
      Fico feliz que tenha sido proveitosa a leitura.
      Abraço

  3. Que texto incrível, consegui enxergar nossas conversas terapêuticas rsrsrsrsrs, minha inquietude diantes das dúvidas disfarçadas de certezas. Fico feliz em ter indicado a série e grata por vc trazer clareza nas muitas notas de vida que ela traz. Parabéns!!!!

  4. Maravilhoso! Contribuiu muito para minha compreensão sobre a postura e percepção a qual as mulheres vitimas de violencia assumem. Sem falar que minha professora pediu uma analise sobre a serie e seu artigo contribuiu muito para minha analise. Obrigada por compartilhar seu conhecimento.

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