Acordei com um raio de sol tão insistente, chato, que parecia ter atravessado o quarto com a única intenção de não me deixar descansar.

Queria ter certeza que eu estaria de pé para testemunhar a beleza de sua obra, salpicando como orvalho dourado a vida que acontece do outro lado da janela.    

Onze horas, vejo no celular. 

Exausta, meto a cabeça embaixo do travesseiro, tentando despistar minha consciência com um pouco de escuridão, sufocando qualquer interferência externa. Espero, quem sabe, resgatar uma pequena fração daquele sono tantas vezes perdido, procurado, durante a noite. 

Minutos depois, compreendo ser impossível ignorar os acordados. Suas vozes indignadas reclamam a minha ausência atrás da porta, insatisfeitas, numa discussão boba: “Sua mãe vai resolver isso”, grita, de algum lugar mais afastado, o pai deles.

O que esperam de mim?

Tenho sempre a impressão que preciso permanecer num estado de insônia constante, alerta, para agradar as vontades da minha família. Acessível a todo instante, pronta para resolver e cobrir várias frentes de problemas à medida que vão se apresentando.

Infalível. É isso o que esperam de mim, que eu seja um ser infalível.

Mas hoje o pedido do meu corpo foi respeitado e aqui estou, no final da manhã, sem coragem para sair da cama, preguiçosa dos meus deveres diários.

Não é sempre que me entrego à rebeldia, fui educada para seguir rotinas disciplinadas e normalmente sou a primeira a levantar. Acho que até prefiro, aproveitar esses momentos silenciosos do amanhecer, ver o céu ainda escuro, a casa adormecida, degustar em paz a minha xícara de café enquanto entrego, sem pressa, cada gole a um pensamento.

Ser filha única do tempo. 

“Mãe, mãe, mãe”, continuam me chamando do corredor. 

A realidade me repreende, ansiosa.

Sento então na cama e me preparo para enfrentá-la, finalmente.

Engulo o primeiro comprimido de uma lista interminável, faço duas inspirações ayurvédicas  e sigo com meus passos miúdos numa caminhada dolorida até o banheiro. Desdobrando o corpo como quem carrega mil anos nas costas.

“Que droga”, reclamo baixinho, para que não saibam que já estou alerta.

Estou enferrujada.

Quando será que passei a perceber o desgaste dos anos? Sentir cansada a minha máquina?

No espelho, me pergunto quem pode ter inventado a expressão “sono da beleza”… 

Pareço ainda mais abatida do que estava antes de dormir. Minha pele árida reivindica os litros d`água que não bebi nos últimos anos, me culpa, pela displicência dermatológica. 

Esse incômodo me perturba. Afinal de contas, onde estarei colocando a minha vaidade? Dentro da minha idade ou num lugar submisso, obcecado pela juventude?

Tiro meu pijama e contemplo as minhas curvas maduras.

Concluo satisfeita que o meu corpo está mais harmônico hoje, aos cinquenta e dois anos, do que aos vinte. Como se as peças do meu quebra-cabeça estivessem melhor encaixadas, pernas, braços, barriga saliente, todos nos seus devidos lugares. 

A imagem que o espelho me devolve não tem idade, sou eu, no meu momento, bela.

Me veio de repente a lembrança do filme que assistimos ontem, quando ri dos comentários sobre a atriz francesa que decidiu não remover cirurgicamente as marcas que os anos deixaram em seu rosto. Talentosa, bonita, mas diferente daquela beleza juvenil famosa. 

Incompreensivelmente cúmplice desse tipo de crítica, enxerguei a enormidade da minha traição. 

Quantas concepções precisaram ser plantadas em mim, durante a minha vida, para que essa mesma pessoa que agora se orgulha e admira o próprio reflexo, ridicularize algo tão sem sentido? Elogiar sem cerimônia o charme grisalho e sensual do ator sexagenário enquanto repudiava a coragem daquela mulher que provavelmente tinha a minha idade? 

Envergonhada, entro no chuveiro deixando a água gelada levar embora minhas ervas daninhas. Talvez tenha chegado a hora de incorporar a mudança que germinou no lugar daquilo que foi embora.

Perpetuar a ideia de que só poderemos ser genuinamente livres e felizes quando abraçarmos sem amarras nossas escolhas e verdades, exibi-las com orgulho.

Me arrumo, penteando o cabelo num coque alto, brincos enormes, batom vermelho “passion” e procuro aquela roupa nova que esperava uma certa oportunidade para sair do armário.

Hoje serei minha versão inteira. 

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