Eu imagino que você se lembre daquele negócio fracassado do meu pai: exportar lagostas vivas. Contei isso no episódio “Quando acaba um sonho”. Eu estava na altura com 12 anos. Meu pai completamente falido, morávamos de favor numa casinha no fundo do quintal da casa de férias de uma cliente da minha mãe, que era excelente costureira, lembra? Ela sempre tinha suas freguesas, onde quer que estivéssemos. Muitas vezes foi a costura dela que matou a nossa fome.

A casinha era de dois cômodos, dois andares: o quarto ficava no andar de cima, onde dormíamos a seis, ou a cinco, meu pai muito ausente, você já sabe o porquê. No térreo, a cozinha, onde fazíamos as refeições. O banheiro era uma casinha no quintal. Uma privada e um chuveiro, frio, claro. Um dia eu entrei nesse banheiro e saí de lá loura. Água oxigenada. Meu pai gostou tanto que logo quis me fotografar! Pia? Não havia. Aliás, pia é um luxo. Dá para viver sem. A felicidade não depende de uma pia.

Batatas

Numa noite, meu pai chegou de viagem vindo de Baía Formosa, onde já não tinha barcos pesqueiros, mas sim aquela jovem fogosa, a Noa, você sabe. Chegou muito entusiasmado com uma nova ideia para ficar rico: “Sabem aqueles biscoitos levinhos e sequinhos, que a gente compra lá no Sul em todo posto de gasolina e nas rodoviárias? Putz, aqui não tem! Poderíamos fazer e vender em todos os postos daqui! De Natal a Recife! Lúcia, (nome da minha mãe) você com certeza sabe fazer, ou não?” “Biscoito de polvilho?” Pergunta ela. “Não, não sei, mas posso tentar…”

Foram muitos quilos de polvilho, azedo, doce, muitos litros de óleo, alguns botijões de gás, muitas horas de trabalho e muitos nervos à flor da pele! E, por desaponto do meu pai e tristeza da minha mãe, não houve um biscoito sequer que ficara durinho, sequinho e leve. Todas as receitas recebidas de conhecidos não vingaram. Eu me lembrei dessa passagem, pois uma amiga do Instagram postou semana passada uma receita de um biscoito de polvilho. Ah! Se naquele tempo houvesse internet…

Meu pai não se deixou abater. “Então vamos fazer batatas fritas, daquelas bem fininhas, chips, nunca vi por aqui. Vamos vender como loucos, todos vão querer!” Foi ao mercado e voltou com sacos de batatas, que comprou fiado. E dividiu as tarefas: meu irmão mais velho, o autista, e eu descascaríamos as batatas. Sentados num banquinho, um saco de batatas entre nós dois, cada um com um balde entre as pernas, onde caíam as cascas e outro com água ao lado, onde colocávamos as batatas descascadas.

“Não é para descascar cortando com a faca, é para raspar a casca, assim temos mais das batatas. Não cortem as cascas, raspem! E rápido, rápido, rápido!” Meu pai passava de vez em quando para controlar, se estávamos raspando ou cortando as cascas. E os meus dedos ficando marrom escuros. Você sabia disso? Batata escurece a pele. Experimente descascar ou raspar batatas por 4 horas consecutivas: suas mãos vão ficar pretas! No início, sentíamos dores nas mãos. Depois de alguns dias, nos acostumamos ao movimento, não doía mais. Meu irmão do meio cortava as batas em fatias finas, as lavava e as secava com panos de pratos, levando-as então para minha mãe, que as fritava no fogão à gás.

À tardinha, as batatas já fritas, então frias, eram salgadas e enfiadas em saquinhos de plástico. Esses fechados por grampeador com uma etiqueta feita por mim, a melhor desenhista da família: “Batatinhas da Lúcia”. Os dias eram cheios, acredite. Mas tínhamos tempo, pois não estudávamos, não havia escola em Janga e tampouco dinheiro para pagar o ônibus até Olinda, onde era o colégio.

Batatas

Possuíamos agora uma DKW velha, toda enferrujada, que tinha um humor bastante especial: se ela morresse num semáforo, não pegava mais. Só se fosse empurrada. E adolescente morre de vergonha de empurrar carro. Morri várias vezes. Enchíamos o porta-malas com os saquinhos de batatas e meu pai batia nas portas dos postos de gasolina da região, bares e padarias. Sua promessa aos futuros clientes: as batatas não vendidas em uma semana seriam trocadas por frescas na semana seguinte. Isto foi a sua ruína. Depois de algum tempo, ele trocava mais que vendia. Mas não se deu por vencido, achava que, na fase inicial do negócio, era normal acontecer tal fato. E tentava aprimorar a fabricação das batatas, nos deixando sempre muito ocupados.

A praia do Janga, na qual morávamos, era cheia de casas de veraneio, onde habitantes de Recife e Olinda vinham passar fins de semana ou férias no sossego e beleza do lugar. Antes mesmo de termos começado com a produção de batatas fritas, eu tinha feito amizade com duas meninas de Recife.

Uma delas tinha muitos irmãos e eles sempre traziam muitos amigos. Inclusive o Marcos. Meu primeiro amor. E meu primeiro beijo, deitada na areia da praia e enchendo o peito de ar, para que a minha blusinha colasse ao meu corpo, de forma que ele não conseguisse enfiar a mão por baixo da minha blusa. Foi assim cometido meu primeiro erro nas relações com os homens, que repeti até pouco tempo: não falar o que quero e o que não quero. E você, se reconhece nesta atitude típica de muitas de nós, mulheres?

Aquele amor singelo e jovem não durou, pois com a produção de batatas fritas, logo eu não tive mais tempo para namorar, brincar. E aquelas mãos pretas! Como explicar? Tinha vergonha de não ir à escola, de descascar batatas. No pouco tempo livre, já preferia me esconder.

Naquela tarde, meu pai chegara mais uma vez da cidade, onde havia ido tentar sua sorte nas vendas. Anoiteceu. Fomos dormir. Todos num quarto só. Ouvi respirações ofegantes. Meus pais na rede. Jamais esquecerei. Como podia? E a Noa? Não deveria existir mais, pensei eu, adormecendo com um sentimento de alívio e feliz.

Algumas manhãs depois, lá se fora meu pai vender batatas como de costume, quando minha mãe nos chamou no quarto e disse, com os lábios tremendo, como sempre fazia, quanto estava muito nervosa: “Nós vamos para São Paulo, para a casa da tia Ruth. Vocês já estão grandes o suficiente para saberem: descobri que o pai de vocês tem outra mulher, e ainda mais, um filho com ela. Eu aguento tudo, mas isso, não.” Meu mundo caiu.

Não sei se foi mais difícil deixar meu pai ou meu irmão para trás. Um de nós tinha que ficar, pelo menos por um tempo, até que minha mãe se estruturasse em São Paulo. Ficou o do meio, o mais inteligente, com 14 anos. Acredito que até hoje ele tenha sequelas da falta de cuidados que sofreu durante os meses em que ficou com meu pai no Nordeste.

Minha tia pagou a passagem de ônibus para todos nós. E a dentadura para a minha mãe. Os dentes sadios foram arrancados. Era mais barato e mais rápido assim. Logo que ela pôde sorrir sem se envergonhar, pegamos nós, novamente, o Itapemirim. Só que dessa vez, rumo ao Sul. Sem ter a mínima ideia de como a vida seria daqui por diante. Minha mãe fez questão de levar sua máquina de costura. Adeus, Papi, adeus mano, adeus Marcos.

Chegando em São Paulo… Oh! Já se passaram cinco minutos? Então vou ter que contar numa próxima vez. Espero ver você aqui novamente e queria muito ler um comentário seu ali embaixo. De alguma forma, estou precisando deles agora, urgentemente. (Sinto o gosto salgado da lágrima que rola sobre meus lábios… Escrever é viver de novo o já vivido.)

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50 comentários
  1. Vida agitada desse senore, susane querida. Sua mãe foi Corajosa. VocÊ ficou muito tempo aem conviver xom seu irmão? Gente, seParar de um irMão quando se e CRIANÇA deve ser muito dolorido. Aguardando o PRÓXIMO caPitulo, desta ve em SÃO paulo?

    1. Vamos ver, querida, vamos ver para onde a lembranÇa me leva. São PaUlo, Alemanha ( o romance com o alemÃo) ou a vida porra-louca de baía formosa? Acho que vou fazer uma enquete! Hahaha! Obrigada por me seguir aqui!

  2. Muito bom!!
    Pergunta, ainda perdida por aqui..essa historia é a da sua vida, ou de outra pessoa?
    Beijos!! Vou continuar a leitura…

  3. Olá, Susane. Bom dia história inspiradora e real .. destinos não escolhidos e acontecimentos só acaso. A vida é assim, não está NEM aí pró seu planejamento. Não é? Abraço fraterno.

  4. A vida é um quebra-cabeÇas cheio de pecinhas esquecidas na nossa memória. Olha só a lembrança que a receita do bIscoito de pOlviLho de TRouxe!
    Uma hIstória incRível Suzanne! Adoraria ver uma foto dos sEus pais!

    1. Oh! Querida! Sim, e cheiros, músicas, situAções sempre noS farão lrmbrar momentos passados. Vou postar uma foto no meu feEd lá no instagram. Fique ligada. E obrigada!

  5. É encantadora a roupagem leve, extremamente visual com que você emoldura suas percepções de um universo tocante, nos possibilitando nos identificar com você. Amo suas narrativas. Bjs!

  6. Amo! A cada trecho eu acho que já deveria ter virado um livro.
    Por favor Suzane pense nesse livro com carinho!
    Vamos amar ler.
    Beijo

    1. A vida às vezes nos Mostra seus lados feios. Mas com isto aprendemos a valirizar seu lado bom. OBrigaDA, cleriston!

  7. Nossa que vida difícil! Incerteza acaba com a gente. Serve para aprendermos , Mas a duras penas. 5 minutos passam muito rápido!!! Quero saber mais! Aguardando o próximo capítulo!

  8. Gosto de te ler. Fico pensando em tudo que viveu e em como estás hoje. Uma vitoriosa. Foi uma vida mto complicada, pais desestruturados, sofrimento real. Me emocionas e encanta. Ao final falas do sabor amargo das lágrimas, mas conseguistes adoçar tua vida. Tu és a mais inteligente dos filhos! O corpinho sempre enxuto , linda. Gosto de tua capacidade otimista de olhar tua vida.??????????

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