Felismina apareceu enfiada em uma calça cargo, botinas pretas e uma camisa bege com logo da empresa. Aquele cabelo trançadinho, uma mochila pendurada no ombro e um sorriso de orelha a orelha denunciavam que ela já estava pronta para colocar o pé na estrada. O sol nem bem havia iluminado as rochas negras de Pungo Andongo, entre Malanje e Luanda, em Angola, e a técnica agrícola Felismina já se apresentava no refeitório com todo gás para mais um dia de gravações.

Confesso que não conseguia compreender como ela fazia para estar tão sorridente àquela hora da manhã (para mim madrugada), pois eu nem tinha vontade de falar. Mas, enfim, lá estava ela me lembrando que tudo estava dentro do programado para irmos a campo.

-Vamos primeiro à machamba (lavoura) de feijão? indagou Felismina. Respondi que a intenção era, inicialmente, começar pela aldeia onde havia a fábrica de fubá de mandioca (eles chamam fubá) e, se desse, iríamos às machambas. E fui logo perguntando se não teríamos problemas para entrar nas vilas, se as pessoas poderiam dar entrevistas etc. Eu sabia que para ingressar nos territórios precisávamos da autorização do Soba (ou chefe, correspondente aos nossos caciques). É claro que Felismina havia providenciado tudo. Ela conhecia, literalmente, o caminho das pedras de Pungo Andongo – região onde nasceu e vivenciou a guerra civil angolana, que ocorreu entre 1975 e começo dos anos 2002.

Fui até o dormitório, reuni meu equipamento, conversei com a equipe de gravação e lá fomos nós àquela estrada entre as rochas, paredões sob a savana, desenhando um imenso contorno sob o caminho de terra.

-Quando eu voltar quero tirar fotos por aqui. Deve ter um pôr do sol lindo entre essas rochas, não é? perguntei ao motorista. Antes que ele me respondesse, Felismina foi logo me contando sobre as lendas e histórias do local. Ela contou entre um misto de orgulho, pena e tristeza, que em uma das maiores rochas de Pungo Andongo a rainha da tribo N´Go, que se chamava Ginga, teria desistido de viver porque sentia-se prisioneira e humilhada pelos portugueses.

Em uma fuga desesperada dos “invasores” ela teria subido nas rochas e lá deixou suas pegadas eternizadas com duas marcas fundas da pedra de onde teria saltado. Para Felismina a rainha Ginga foi uma guerreira. Já eu penso que, além disso, Ginga deixou uma enorme herança às mulheres da sua tribo. Ginga era corajosa, determinada, tinha conhecimento sobre pertencimento. E o mais importante: Ginga não queria ser mandada, ser uma pessoa submissa, oprimida. Ela era uma rainha, tinha seu lugar naquela sociedade, até ali matriarcal.

Penso que Ginga deixou à Felismina uma boa herança: liderança, determinação e coragem para estar à frente de um trabalho que, na Angola dos anos 2009 ainda era um tabu: ela tinha liderança técnica, no mundo masculino da fazenda onde era empregada, havia feito a Escola Agrícola e superado os traumas da guerra. Queria muito ir adiante, talvez ser agrônoma. Felismina, porque te deram esse nome, perguntei. “Meu pai olhou para mim quando nasci e disse que eu seria uma feliz menina e aí virei Felismina”, me contou rindo.

Essa mesma mulher que fazia levantamentos nas comunidades, ensinava técnicas de plantio e anotava a produção dos agricultores, um dia, em um evento destinado a troca de informações sobre variedades de plantas, ao ver um especialista ir para dentro de uma cova para explicar as camadas do solo e por onde as raízes sugam nutrientes, desmaiou ao ser convidada para ajudar o agrônomo na explicação. Ninguém entendeu, foi um corre-corre danado. Alguns achavam que era o calor…. Felismina contou que tinha horror a covas, buracos na terra. A explicação: o buraco a fez lembrar como ela e os irmãos se escondiam em buracos no mato, nos tempos da guerra civil angolana.

A Felismina assustada deu lugar à criança aterrorizada. Mas, tão logo se recuperou, tratou de explicar que achava ter esquecido aqueles tempos e cuidando das plantações, compreendendo as técnicas usadas por seus antepassados à produção de alimentos em campos que ainda na primeira década dos anos 2000 continuavam com minas explosivas, uma das marcas da guerra que quando não devorava uma pessoa inteirinha, a deixava sem pernas ou braços.

Aos poucos, as minas terrestres foram retiradas e os campos daquela região de Angola voltaram a receber sementes que brotavam e transformavam a paisagem da savana. Ela também levava aos povoados e vizinhanças as novas tecnologias de uso da terra e seus frutos. Felismina era uma mulher-menina, naquela época, mas ganhou o respeito nas comunidades de Pungo Andongo.

Felismina
Dona Elisa na fábrica de fubá

Antes de pensar em almoço, vi a força de Ginga em outra mulher: Elisa, do alto dos seus 64 anos, com uma pele invejável, imensas argolas às orelhas, uma capulana à volta da cintura e um olhar manso. Ela comandava uma pequena fábrica de fubá de mandioca. Me apresentei e, na minha ansiedade de saber tudo sobre o processo de secagem da mandioca até virar uma fina farinha fui falando, perguntando e escolhendo o melhor ângulo para começar a gravação do vídeo.

Me dei conta que algo no olhar de Elisa, cheio de interrogações, me dizia algo. Troquei os olhares com o cinegrafista. Continuamos na mesma situação: Elisa não me respondia. Pensei: será que ela não compreende português? Será que ela fala alguma língua local, somente? Então, me socorri em Felismina, que assistia aquela cena com paciência e já havia diagnosticado o problema. Foi então que ela se levantou e disse à Elisa: “Mãe, ela quer que a senhora conte sobre sua vida, como a senhora aprendeu a torra da mandioca. Vá contando para ela, mãe.”

Aí enxerguei meu erro: precisava chamá-la de mãe, de mãe Elisa. Mas como eu faria? Chamar alguém de mãe, que não fosse minha mãe, era quase impossível. Me dei conta do significado disso para mãe Elisa se sentir próxima de mim, confiar em mim, conversar comigo como alguém que tinha um lugar naquela sociedade. Sim, as mulheres angolanas são chamadas de mãe e isso permite a elas uma posição na família e na comunidade.

Mãe Elisa tinha algo da rainha Ginga e ali na vila de Pungo Andongo era agricultora, cuidava da secagem das mandiocas em cima das pedras, cuidava da torra nos fornos recém-chegados e comandava as mulheres que com ela trabalhavam naquela mini fábrica de fubá.

Depois que eu disse a palavra mágica (mãe) ela sentiu-se mais confiante e, embora o português dela não fosse o seu forte, ambas nos socorremos de Felismina, que às vezes traduzia as palavras e assim foi até o final da entrevista. Compreendi naquele momento que uma mulher, não necessariamente mais velha, carrega o vocábulo mãe no útero. Ela é mãe da sua prole, da prole da comunidade, mãe do seu povo.

Ginga, a rainha que reinou nas terras de Pungo Andongo foi mãe de todo aquele povo e, certamente, quando sentiu sua força materna se esvair com a chegada dos colonizadores, homens, preferiu continuar rainha em outras terras. Felismina, a feliz menina era uma mãe não biológica, mas cuidava da mãe terra e era mãe zelosa da natureza.

Meu aprendizado nessa ida a Pungo Andongo, muito além da coleta de dados e da produção de entrevista, reside na fortaleza do feminino, do útero, da terra que nos alimenta e da mãe que alimenta a terra com sementes e seus filhos com os frutos da terra. Na época minha reflexão não foi bem assim, pois estava mais preocupada em anotar e anotar o que me contava Mãe Elisa (notem com M em caixa alta).

Mas tão logo deixei Pungo Andongo pensando em Ginga e Mãe Elisa e Felismina o vocábulo mãe mudou. Ele é mais do que o ser biológico que pariu. Mas é a criatura com útero que cuida, que alimenta sua família, sua comunidade.

Nunca mais enxerguei o vocábulo mãe como apenas a mulher que morei no ventre por alguns meses, pois sua compreensão está atrelada à cultura. Lá em Pungo Andongo a palavra é praticamente igual a respeito, sabedoria, alimento, vida.

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13 comentários
  1. Deva, a palavra mãe, para mim, tem um forte significado. sem pai, tive tres mães me conduzindo na vida. Lendo teu lindo texto, lembrei de várias mães – mães denominadas bruxas, pelo conhecimento das ervas, mães de orfanatos ou mães freiras que ASSUmiam órfãos ou rejeitados e por fim, teu texto aumentou infinitamente o desejo que conhecer sempre mais a rejeitada e discriminada Mãe Africa.

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