Sentados lado a lado naquele trem que balançava os nossos corpos a cada ondulação dos trilhos, a cada curva, estávamos os dois muito tímidos, falávamos pouco. A conversa se reduzia àquelas perguntas de praxe que fazemos quando estamos conhecendo alguém. Perguntas que eu ouvia com muita frequência na Alemanha, cujas respostas já saiam num perfeito alemão, quase sem sotaque: “De onde você é”, “Porque veio para a Alemanha – o Brasil deve ser tão bonito, tão quente”, “Aqui é muito frio, sempre cinza, não sente saudade das praias, das pessoas alegres, do calor, da música?” … Eu não me atrevia –e nem tinha tempo– para fazer perguntas, no máximo saia da minha boca um “E você?” após ter respondido à alguma indagação dele.

Hoje, receio que o europeu vá ficando cada vez mais solitário por medo do que falar do que perguntar a estranhos. Hoje, vejo angustiada uma sociedade preocupada em ser extremamente não-racista, não-preconceituosa, não-sexista. Tais perguntas como as que foram a mim feitas naquele trem, há quase 40 anos, são atualmente motivo de polêmica e desagrado por aqui. Sempre me perguntaram muito sobre minha origem. O que nunca me deixou sentir que fosse por racismo ou preconceito, mas sim um sentimento bom de saber que as pessoas se interessam por mim. Será que não temos que temer as consequências de uma sociedade sem liberdade para manter um diálogo espontâneo, pois tudo falado pode ser levado para um lado pejorativo? Já ouviram falar no atual “cancel culture”? Observação à parte.

“Então você desce do trem depois de mim, eu desço na estação de Hösel, que é a próxima. Nos vemos amanhã, no mesmo horário? Te espero na entrada da estação, te convido para tomar um café.” (Aqui na Alemanha, quando alguém usa a expressão “convidar” significa de antemão que ela pagará a conta, que você não terá despesas com o combinado –seja ele o que for, uma viagem, um jantar, um evento. Quem convida, arca com as despesas.) Desliguei a razão e deixei rolar o sentimento: “Sim, com prazer.”

À mesa de jantar em casa, mais tarde, eu estava muito faladeira. Ri muito, fiz piadas com os meus tios, estava feliz. Mas, naturalmente, não comentei sobre o desconhecido do trem. Muito menos sobre ter combinado um café com ele! Não queria que conselhos tirassem a magia do momento. Sentia algo inadequado no ar.

Revelação

Adormeço feliz, após ter experimentado ao espelho vários outfits para o dia seguinte, sem, na verdade, poder decidir o que vestir. Até hoje, sou assim. Na maioria das vezes visto na última hora e espontaneamente algo que não havia levado em consideração antes. Essa atitude me faz odiar fazer malas para viajar. Sempre levo o que na verdade não vou querer usar. E o que então vou querer usar, acaba ficando em casa… E com você, é assim também?

Acordei mais cedo do que de costume, queria ter os cabelos brilhantes e bonitos, lavei-os. Tenho sorte, estava um dia ensolarado, embora já frio –era outono. Vesti um macacão preto com aquelas ombreiras enormes típicas dos anos 1980 e as calças com corte estilo baggy, lembra? Cinto apertado, talvez mais do que devesse, marcando a cintura, fazendo minha silhueta parecer ainda mais feminina. Calcei as sapatilhas e na bolsa levei o sapato de salto alto, assim como os brincos gigantes –você se lembra: minha tia… Cabelos esvoaçantes, lá ia eu, excitada e feliz… Não, hoje não iria à academia após o trabalho. Como não o fiz nas várias semanas que se seguiram.

À tardinha, conforme combinado, vi já de longe aquele sobretudo marrom andando, devagar, mas inquieto, de um lado para outro na entrada da estação. Meu coração estava aos pulos, o que ele logo observou, ao nos encontrarmos: “Você está, como eu, muito excitada. Não consegui sequer trabalhar direito hoje”, ele diz. “Vamos?” Segurou o meu braço e me guiou em direção ao café. A Confeitaria Heinemann ainda é das mais tradicionais da Alemanha e um “must” quando numa visita à Düsseldorf.

Como estava tímida! Sempre com medo de fazer ou dizer algo errado, sentamo-nos na mesa e o tempo parecia voar… Conversamos sobre tudo como se nos conhecêssemos há muito tempo. Depois da hora que estivemos juntos, que parecera ter sido somente dois minutos, andamos novamente em direção à estação e entramos no trem. Calados durante quase toda a viagem de 45 minutos, mas com nossos corpos sentindo a proximidade do outro e ofegantes, muito ofegantes. Nos despedimos não sem antes combinar um novo encontro, no dia seguinte.

Foi assim durante toda aquela semana. Ele passou a me esperar na saída do escritório, assim ganhávamos alguns minutos juntos. Íamos ao “nosso” café, sentávamo-nos na “nossa” mesa. Éramos atendidos pela “nossa” garçonete. Conversávamos. Ríamos muito. Pegávamos o trem, despedíamos e já não era necessário combinar o encontro do dia seguinte, era já óbvio. Sexta-feira, depois do café, já no caminho à estação, de repente ele me puxou pelo braço para junto de si, me abraçou carinhosamente, me beijou na boca o beijo mais longo que havia beijado até então. Ficamos ainda abraçados por um momento e ele disse, baixinho: “Me apaixonei por você, mas sou casado”.

Fiquei sem ação. Me deixei levar para o trem como um robô, não falava nada, só escutava: que não era feliz no casamento, que se casou muito cedo, duas filhas, de seis e de oito. Que já não amava sua mulher, que há muito tempo já queria se separar, agora teria uma razão concreta para isso. Que, portanto, não nos veríamos no final de semana, com que desculpa sairia de casa? Tudo havia que ser planejado, feito com ponderação e calma.

Revelação

Ele desceu do trem e eu comecei a chorar. Estava –ou pensava estar- perdidamente apaixonada, por aquele homem másculo, forte, bem-sucedido, inteligente, bonito e atraente, que me dava um sentimento novo de ser respeitada e importante para alguém, realmente importante. Ou será que é tudo uma grande mentira?

Veio-me na mente o Rui, aquele advogado-poeta carioca, “o caranguejo caga, o homem come”, lembra? Contei isso no episódio “Seduções da Cidade Maravilhosa”. Ele também era casado. Mas aquilo foi só uma brincadeira, tanto para ele quanto para mim, isto esteve sempre claro para nós dois. Nunca falamos a palavra amor. Era sexo, só sexo, sem importância e para mim foi muito fácil colocar um ponto final no caso, o que logo fiz. Mas agora? Com o Wolfgang parecia tudo tão perfeito, tão sincero, tão real!

Porque ele não me disse logo, no primeiro encontro, que era casado? Naquele dia em que tantas perguntas fez? Porque esperou até ter conquistado meu coração, porque deixou-me apaixonar por ele? Ele, dez anos mais velho que eu, que, na altura tinha 22 anos? Ele, pai de duas filhas? Marido de uma mulher arquiteta que deixou a carreira para se dedicar ao lar, ao bem-estar de marido e filhas? Teria sido tudo uma estratégia para ultrapassar o famoso “point of no return”, aquele momento em estamos presas numa armadilha de sentimentos mais profundos, da qual, usando somente a razão, não somos mais capazes de fugir?

Eu, amando um homem casado? O terreno era fértil: sem aconchego e amor na casa onde vivia, estava longe da família, sentia saudades, amigos não tinha e me sentia como um peixe fora d’água no convívio com os colegas de trabalho.

E… o que pensaria minha família, minhas tias, às quais eu devia tanto, que faziam e fizeram tanto por mim, e que eram tão cheias de normas, moral, ética? Eu tinha que me livrar desse homem o mais rápido possível. Será que conseguiria?

Se você quer saber o que aconteceu após a revelação dele, volte. Vou contar aqui, talvez no próximo episódio. Você já sabe, eu não conto em ordem cronológica. Conto sempre o que meu coração quer contar, mas sempre na expectativa de te entreter, de ler nos comentários o que você achou da narrativa. Muito obrigada pelo tempo que você me presenteia ao me ler. Tempo é a coisa mais preciosa que temos, vem logo após a saúde.

1 Shares:
34 comentários
  1. Estava com as mãos no queixo e eu levei em susto junto contigo com a palavra “casado”. Caramba! Quando depositamos expectativas e quando esse alguém ajuda nesse processo, fica tão mais complicado já que o sentimento está nascendo. Quero saber o que vai acontecer! Muita curiosidade 🙂

  2. Acaba se Tornando uma tortura agradável Esperar pelo próximo capítulo. Como sempre, adorável a Leitura e obrigado por partilhar conosco sua história. Beijos

  3. Susane: mais um Capitulo para nos deixar pensando: o que virá? SEra que ela vai mesmo ficar “enrolAda no sobretudo marrom do Wolfgang? Fico aqui pensando que com uma boa narração essas histórias dariam um EXCELENTE podcast (com trilha musical ). Que tal ? Bom, ja estou AGUARDANDO A prÓxima historia (seja a do alemao, do carioca oU outra).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar:
O meu número
Saiba Mais

O meu número

Roupas aguardam a minha escolha, enquanto passo a mão sobre cada uma delas. Indecisa, preciso me vestir. Como cheguei até aqui?