Eu fui você. Toda vez que acendeu aquele cigarro à procura de paz, impulsionando o mais longe possível a fumaça que lentamente descartava por seu nariz e boca. Prolongando, até perder o fôlego, o que parecia ser o mais importante evento da sua vida. Aproveitando o seu tempo pretensiosamente ocioso. Como se todo esse esforço fosse também capaz de te lançar para onde voou o seu ar. Como se fosse possível fugir junto à fuligem expelida das suas entranhas.

Eu sei quem você é. Conheço sua tentativa nobre de desempenhar tão bem um papel ensaiado que nada nem ninguém poderia vir a desconfiar que ele não era seu. Porque você sempre sorriu, amavelmente, acessível, como todas as outras, cúmplices no silêncio. Depois de ter servido o almoço. Lavado a louça. Arrumado o armário da copa. Seus filhos alimentados e limpos. Suas obrigações habilmente cumpridas. Não ousaria olhar adiante. Não lhe era permitido. Suas escolhas, sonhos, seu sexo, foram sufocados ou mortos cruelmente. Você foi sem nunca ter sido.

Eu fui sua filha. Quando saiu de casa decidida a escapar do ciclo vil de submissão e apatia que amarrou sua mãe irremediavelmente. Quando procurou o espaço e a voz inexistentes na sua infância. No estudo. No trabalho. Equilibrando sua atenção entre filhos, companheiro e a vida de professora. Correndo, para dar conta das funções que não paravam de cobrar, cada vez mais, a atenção que já não sabia mais ser capaz de dar. Sua decepção ao perceber que ainda precisaria ouvir- e muitas vezes aceitar- o que teimavam lhe dizer. O que fazer, vestir, ler e falar. Suas opções podadas. Seus medos valorizados. Seu desejo questionado. Ela já não sabia mais quem era.

Hoje eu sou a soma dessas minhas mulheres. Eu grito, canto e danço o que elas não puderam. Exploro a minha independência e a minha voz. Me liberto, pouco a pouco, da censura das minhas expectativas. Do olhar do outro. De tudo o que carreguei e não fazia parte de mim. Sou, ainda, tão elas quanto eu. Na luta para me enxergar e respeitar quando mais ninguém é capaz de fazê-lo. Encontrando a beleza real que precisará me satisfazer apenas e tão somente. Na tentativa de me livrar dessa herança de culpa que transforma e desgasta a minha maternidade. Da marca de cuidadora que nos escravizou e calou por tantas gerações.

O que fazer, agora, com quem eu sou? Talvez seja esse o meu maior desafio. Me descobrir verdadeiramente. É isso o que me move e alimenta.
O futuro, guardado nas sementes fortes e decididas que gerei e reguei com a história daquelas que lutaram antes de mim, está aí plantado. Aguardando sua hora de florescer e frutificar. Destemido. E para ele nada importa mais do que ser. Doa a quem doer. Repleto de possibilidades. De coragem. No seu lugar de direito.

Foto retirada do perfil de @yazemeenah

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