Você já deve ter lido minha historinha “Seduções da Cidade Maravilhosa” e sabe que aos 22 anos entrei, pela primeira vez na vida, em um avião, indo para a Alemanha, onde moraria na casa da minha tia Ute. Como lá mencionei, uma “grande dame” alemã, arquiteta, casada com meu tio Paul, empresário. Novamente um mundo novo se abriu para mim.

Logo ao chegar à casa da minha tia, tive minha primeira surpresa: era primavera e, embora a temperatura exterior fosse de apenas 12 graus, a casa toda estava bem quentinha, 21 graus, assim como o quarto no andar superior da casa, pequeno e aconchegante, que doravante seria o meu.

Um edredom recheado com plumas de ganso, muito levinho, encoberto por uma capa de algodão macio estampado com flores grandes em tons pastel, ah! Fecho os olhos e sinto ainda hoje o cheiro daquela cama! Enfiei-me no pijama de flanela cor-de-rosa e calcei as meias rosa-bebê, tricotadas pela minha mãe para que eu não passasse frio à noite. Enquanto saboreava o gosto salgado das lágrimas escorrendo sobre meus lábios. Medo do novo? Felicidade por estar realizando um sonho?

Meti-me debaixo do edredom, me regozijando no ruído suave dos tecidos e adormeci rápido, para acordar algumas horas depois no meio da noite banhada de suor! Que calor eu sentia! Despi-me até as calcinhas e aconcheguei meu corpo nu naquela cama tão diferente e tão gostosa para só me despertar de novo pela manhã com minha tia batendo à porta: “Frühstück! Gibst du uns die Ehre?” (“Café da manhã! Você nos dá a honra da sua presença?”).

Conde

Então, se você nunca veio para a Europa, lição número 1: não traga roupa de frio pesadas para usar dentro de casa. As casas são aquecidas! O que você precisa: um casaco bem quente para usar por cima das suas roupas habituais, quando estiver ao ar livre. Este casaco você tira assim que entra em alguma casa ou estabelecimento. Dentro das casas você definitivamente não sentirá frio.

Os primeiros dias e semanas foram para mim como uma escola: minha tia me levava para todos os lugares aonde ia, me mostrava tudo. “E sempre ofereça a mão quando eu te apresentar a alguém, seja quem for, do ministro à faxineira. E o lugar do guardanapo é sobre o colo; não fale quando outros estiverem falando, espere a sua vez; suas calças são muito justas, seus saltos muito altos, seus brincos muito grandes. Fale sempre um alemão correto e não se deixe influenciar pelo dialeto local.” Ufa!

Eu usava um casaco de frio dela, feito de lã xadrez em tons de bege, grande demais para mim, até que, numa manhã, durante o café, minha tia anuncia: “Hoje vamos às compras, Kind. (Kind significa criança, filho ou filha – minha tia me chamava sempre assim.) “Você está precisando de umas roupinhas e sapatos adequados.”

Duas horas mais tarde estávamos nós duas circulando pelas boutiques da Königsallee na cidade de Düsseldorf, o endereço de marcas high-end como Prada, Louis Vuitton, Escada e consortes. Eu experimentava, sob os olhos críticos da minha tia, saias que achava medonhas, paletós horrorosos e sapatilhas muito feias, embora todos com etiquetas de grandes designers. Acabamos comprando entre outras coisas um casaco de lã comprido até os tornozelos da marca alemã Joop em azul marinho. “Azul marinho combina com tudo e é muito elegante, Kind”, disse ela sobre o qual eu me sentia horrorosa e do qual me livrei logo que foi possível, no inverno seguinte.

Só fui me dar conta da grande generosidade da minha tia muito tempo depois. Mesmo porque eu não tinha, naquela altura, a menor ideia de que estávamos na rua mais sofisticada de uma das cidades mais chiques da Alemanha e tampouco tinha noção da significância daquelas grifes.

Havia ainda minha prima Cora, cinco anos mais velha que eu, estudante de história de artes na cidade de Colônia, onde morava. Um de seus colegas da universidade, de família nobre, que carregava o título de Conde, resolveu fazer uma festa no castelo da família em comemoração dos seus 30 anos. Eu fui convidada para a festa, junto com a minha prima.

Conde

Foi uma correria. Traje de gala, vestido longo, o que eu naturalmente não possuía. Minha tia vasculhou minhas roupas e achou aquela blusa branca de tafetá, feita por minha mãe, desenhada por mim, que eu nunca havia usado, por falta de oportunidade. “Que maravilha de blusa!”, espantei-me, porque minha tia era muito conservadora, nenhum decote, nada de roupa marcando o corpo ou espalhafatosa. E essa blusa tinha tudo isso: era justa, tinha um decote memorável na frente e outro mais profundo nas costas, e babados, muitos babados. Minha tia não teve dúvidas: “Vou mandar minha costureira fazer para você uma saia de seda selvagem em rosa-chá, longa e bem rodada, bem apertada na cintura. Com essa beleza de blusa, e seus brincos novos de pérolas, você vai ser a mais linda da festa!” (Como não tenho fotos, desenhei o traje na melhor maneira que pude, para você ter uma ideia – veja a ilustração.)

Acho que nem minha tia – e muito menos eu, que estava me sentindo extremamente insegura na situação – contávamos com o resultado… Quando o tal do conde me viu chegando à festa com a minha prima, fez questão de que eu me sentasse à sua direita, para que ele fosse o meu “Tischherr” (=cavalheiro de mesa) durante todo o jantar, o que era uma honra, pois ele era o anfitrião.

Eram várias mesas redondas, lindamente decoradas com enormes arranjos de flores, lindos pratos e talheres, muitos talheres. Um ambiente muito requintado, cadeiras com encosto alto de veludo vermelho-vinho, muitos quadros nas paredes, cortinas de tecidos nobres.

Na mesa à qual eu estava sentada, a conversa girava todo o tempo em torno do Brasil e da minha pessoa. Faziam-me perguntas sobre arte, política, assuntos gerais, para a maioria delas eu não sabia a resposta. Eu me sentia extremamente ignorante, desinformada, e muito desconfortável. Uma banda pop tocava os hits internacionais do momento. Para fugir às perguntas, eu dançava, não recusava um convite. E descobri duas coisas: que na Alemanha, eu era uma ave-do-paraíso. E que a minha ignorância eu podia disfarçar muito bem com o meu charme.

O que eu definitivamente não aprendi naquele momento, mas sim anos mais tarde, é que charme sem cultura e informação não é suficiente para que alguém seja totalmente integrado e aceito em determinadas classes sociais mais nobres. O Conde, assim como outras pessoas que conheci nessa festa, nunca mais vi.

Mas conheci outras pessoas, aprendi outras coisas. Só que isso eu conto de uma outra vez. Você quer? Responde para mim no espacinho abaixo para comentários. Cada comentário é um carinho no meu rosto. E eu respondo sempre. Obrigada.

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37 comentários
  1. Eu simplesmente viajo em suas publicações, elas me fazem desprender me de tudo o que é ruim e me transportam para um lugar de calmaria. Sua trajetória de vida é digna de um filme. Obrigada por dividir sem nenhum egoísmo essa energia boa , capaz de transcender e reluzir dentro de mim. Beijos ?

    1. Elaine, fiquei emocionada. PoIs minha maior Intenção ao escrever é justamente isto: transportar o leitor para um outro mundo, fazendo com quê ele se desligue, pelo menos por alguns minutos, dos seus Próprios problEmas! Obrigada por me ler e pelo seu comentário!

  2. Adorei, ao ler tua narrativa
    Remeteu-me ao autor Bruno Bettelheim e os contos de fada. A magia do mundo fantástico e a realidade.

  3. Gosto mto de ler teus contos. Fazes DESCRIÇÕES detalhadas e bonitas, chego a viajar contigo e viver a experiência. Sinto um tesão em todos os momentos, sejam boms ou não. Podes dizer “ confesso que vivi” como Pablo neRuda. Um beijo de tua fã

  4. Posso imaginar Bem como foi esta festa. Os “aristocratas” europeus podem ser muito arroGantes. Nao tenho a menor vontadE de dazer parte deSte circUlo, que Se acha especial e exclusivo. E vc?

    1. Lisa! Bom te ver por aqui. Obrigada por me Ler e comentar! Na verdade, sempre fui muito bem tratada, mesmo quando Eram (ou são) aristocratas, mas São Na grande maiorIa, gentilezas supÉrfUlas. Eu gosto de conhecer todo tipo de gente. Para mim, Não há nada mais interessante qUe o ser humano…

  5. Maravilhosa!!!
    Agora sempre que eu passear pela könIgsallee vou lembrar de vocÊ. ?
    Eu não sabia que voce primeiro morou pertinho de mim.
    Beijos e quero mais.

    1. Pois é, Luciano. O mundo é pequeno. Quando for à kÖnigsalee, tome uma berliner weisse por mim… amava! Obrigada por me ler e pelo seu comentário.

    1. SIm, paula, uma pena. Mas naquele tempo não Se foTografava tanto e tudo, como faZemos hoje. Tentei desenhar o look, mas… A saia era essa da foto acima, mas aqui usada em casa no natal, cOm um pulÔver. Nem ficou bonito. Obrigada por me ler e pelo seu comentÁrio!

    1. Sim, e me senti um pouquinho princesa. Um pouquinho estranha e um pouquinho sexy. De tudo um pouquinho. Obrigada por me ler e pelO seu comentÁrio, lourdes!

    1. Obrigada, Cláudia! No texto “seduÇões dA cidade maravilhosa” contei que estudei alemão no Rio e já partí para a alemanha falando até bastante bem… o que foi de grande ajuda Também na tal festa! Semana que vem tem mais! Te vejo por aqui?

  6. susanne,
    há alguns minutos, comecei a ler na ordem das publicações, os teus relatos.
    até deixei um comentário no primeiro!
    e cheguei até aqui feliz e curiosa com sua prosa bem contada, sua boa estratégia de embaralhar a cronologia dos fatos e com o conteúdo de uma vida gangorra e colorida.
    estou adorando!
    e te agradeço por dividir conosco nesse espaço tão bacana a ciranda da sua vida !
    que venham os próximos capítulos !
    bjs

    1. SusAnne, concordo com a Mia que A Forma não CRONOLÓGICA com que conta sua HISTÓRIA enrIquEcem muito seus textos! É sempre uma delícia de ler. Agora , você não vai acreditar! Minha filha se chama cora! ?

      1. Que bom ler isso. JÁ haVia me perguntado se está ficando muito embaralhado, mas tento fazer De cada Um uma hIstorinha completa. Parece entÃo que está dando certo. Na verdade, os nomes que escrevo aqui nÃo são os nomes verdadeiros das pessoas, uso pseudônimos. QuestÃo De respeito à privAcidade das pessoas… E o nome Cora usei porque acho lindo! Escolheu Bem o nome da sua filha! Obrigada por me ler, querida!

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