Eu tinha todo o plano da festa surpresa para o Saulo já elaborado na minha cabeça. (“Sucesso, solidão e amor requentado”.) No entanto, antes que eu pudesse falar sobre eles com seu amigo ao telefone, na intenção de que ele me ajudasse na organização e realização da festança no Rio, ele disse: “Não se preocupe. Eu, Célia e Saulo já estamos organizando uma grande comemoração, já está tudo planejado e providenciado, desde os mínimos detalhes.”

Quando eu ouvi tais palavras, o fone caiu da minha mão como uma pedra pesada. Como, eu não sabia nada desta festa? E Célia, a “ex-noiva” estava também presente? Sem saber o que fazer, peguei a chave do carro, desci como um robô para a garagem, entrei no carro, com intensão de ir para a casa da minha mãe, precisava de amparo.

Era noitinha e chovia aquela garoa típica de São Paulo. Saí da garagem “cantando” pneus. Dirigia rápido, estava mesmo transtornada. Numa decida, e por estar em velocidade alta demais, não consegui mais controlar o carro ao fazer uma curva. Este derrapou, indo parar na pista, atingindo um outro veículo, dando origem a um acidente, que, finalmente, envolveu seis carros.

Graças a Deus que ninguém, além de mim, se machucou. Mas o prejuízo material foi grande! Logo chegou a polícia, ambulâncias e, apesar de meu carro estar completamente amassado e sem condições de continuar rodando, eu sofri apenas alguns ferimentos no rosto.

E por isto, perante a polícia, fui considerada “vítima”. Calei-me, embora eu soubesse que havia sido culpada de tudo. Não teria a menor condição financeira de arcar com o prejuízo total do acidente. Sentia um enorme remorso, uma enorme culpa.

Policiais telefonaram para minha mãe avisando sobre o acidente. Meu irmão mais novo, na época com seus 19 anos e uma motocicleta pequena, a levou para o hospital na garupa da moto. A caminho do pronto socorro, passaram pelo local do acidente, onde minha mãe, ao ver meu carro completamente aniquilado, apertou meu irmão forte e só pode dizer: “Meu Deus, proteja minha filha.” Alguns dias depois, recuperada do susto, vendi meu Corsa azul celeste para o ferro-velho e paguei com o dinheiro, a última prestação dele.

Nunca mais na minha vida vi o Saulo. Será… que realmente criei vergonha na cara? Que como disse minha mãe, era o que eu tinha que fazer?

Eu não o vi mais, mas muitos anos depois, eu já casada, aos 44, meu filho já com sete anos, apareceu o Facebook na internet. E é claro, eu fiz um perfil lá, quem não fez? E não é que o Saulo me achou e teve coragem de me contatar? Contando o que acontecera com ele naqueles 20 anos que não nos havíamos visto. Saulo é quatro anos mais velho que eu, estava então com 48 anos.

Contou que havia se convertido à igreja, achado Jesus, após ter passado uns bons bocados. Havia se perdido no vício, drogas, álcool, jogos e sexo. Perdeu o emprego e se perdeu nas dívidas. Foi até o fundo do poço.

A única coisa que tinha conseguido manter havia sido aquele apartamento que comprara para nós, há muitos anos. Um apartamento pequenino, quarto-sala-cozinha-banheiro. E lá morava agora com toda a família, seis pessoas, estava casado com a tal da Célia, ela pariu quatro filhos e estava grávida do quinto. Tinha ainda mais dois meninos, já rapazes, com outras duas mulheres, suas amantes do passado.

Há muito sem emprego, sem dinheiro, trabalhando de bico aqui e acolá, as vezes vendendo na praia os doces que sua mulher fazia, era excelente doceira. Queria abrir uma doceria junto com a mulher. Passavam necessidades, mas tinham encontrado a fé, que o salvou das sombras. Sua mulher, “uma santa”, como disse ele, que o acompanhou durante toda a jornada no inferno.

Vi fotos da sua mulher, estava acabada, com uma expressão infeliz e cansada. Sem alguns dentes, pois não havia dinheiro para que fosse ao dentista. Vi fotos dele, seu olhar de diamante negro de dias passados já não brilhava mais. Aquele corpo perfeito de antes havia perdido a forma, espelhando talvez os efeitos das drogas. As crianças muito bonitas, todas com olhos de jabuticaba e parecidas com o pai. Faltava dinheiro até para comprar material escolar e para as compras.

“Jesus há de ver que agora estou em Suas mãos e tudo há de dar certo, pois Jesus não deixa seus cordeiros sem amparo”, disse. Enquanto isso não acontecia, mandei algum dinheiro, para que comprasse o que estivesse faltando para as crianças. Senti muita pena dele e de todos! Ao contar isto para o meu marido, ele me abriu os olhos: trabalhávamos tanto! Não tínhamos que carregar a cruz de outros. Foi a única vez que mandei dinheiro para ele.

Saulo achava que eu estava bonita demais para uma mulher casada, para uma mãe. Me achou por demasiado vaidosa e as fotos postadas no meu perfil no Facebook, impróprias. Ele iria me mandar uma Bíblia pelo correio, eu deveria ler, orar, Jesus me salvaria dos pecados do mundo. Ele realmente mandou a Bíblia, uma Bíblia cor-de-rosa, que tenho até hoje e única que possuí na minha vida, pois não sou religiosa.

O fato de saber sobre sua história de vida me tocou profundamente. E mais uma vez me certifiquei de que tudo tem seu propósito. Embora eu tenha por muitas vezes feito de tudo para que nos tornássemos um par, tal não aconteceu. E, vendo como a vida de Saulo se desdobrou, senti-me aliviada. Me recusei a questionar se, caso houvéssemos ficados juntos, Saulo teria se perdido assim nas drogas, no sexo, nos jogos, nas dívidas?
Ou teria sido eu a sofrer a seu lado, assim como sofria a Célia?

Somente após saber de toda a trajetória de vida do Saulo, me curei definitivamente daquele amor não correspondido. Não havia mais amargura, nem rancor. Só pena, alívio e gratidão. Gratidão por ter sido obrigada pelo destino a seguir outro caminho. Não mandei mais dinheiro, não respondi mais suas mensagens. Ele insistiu bastante, mas um dia desistiu de me contactar.

Sua última mensagem recebi há uns 15 anos. Fiquei sabendo que abriu uma loja de doces no Rio. Escrevendo isto aqui agora, fui verificar. No Google está escrito: “fechada permanentemente”. Seu perfil no Instagram mostra fotos de seus filhos, fotos suas, nenhuma atual da mulher, mas uma declaração de amor a ela. Frases bíblicas e muitas fotos de ondas, bom surfista que era. Ou ainda é. Seus Stories não olhei. Não quero correr o risco de que ele me ache no Instagram. Fim.

Após me reabilitar física e psiquicamente do acidente em São Paulo, tomei uma decisão que mudou completamente minha vida. Se você me acompanha aqui há algum tempo, já deve ter lido sobre ela. E aqui os episódios se encontram: “Nem o paraíso é perfeito!” Foi quando deixei a vida de prima yuppie e fui ser prima bicho-grilo em Baía Formosa! (“As muitas vidas de uma sessentona feliz”).

Vou continuar a contar para você mais episódios da minha vida, tirando você do seu dia a dia por cinco minutos por semana, te levando para passear comigo nas minhas aventuras. Quer vir comigo?

0 Shares:
24 comentários
  1. O tipo de ajuda que ele precisa realmente não pode ser financeira e sim mais profunda e pessoal(profissional sendo direto), pois infelizmente muitos na dor se retraem, mas quando a alegria vem e também os bons resultados, voltam a se soltar e à aquilo que lhe dá prazer.

    Que bom que você saiu dessa.
    Mas eu já deduzia que ele não tinha terminado com a noiva.
    Ótima leitura como sempre.

    1. Eu acredito que Saulo esteja agora em paz. Ele encontrou realmente a paz na religião. Fico feliz por ele. E você tem toda razão: ajuda financeira é muito superficial e passageira, já tive a oportunidade de vivenciar tal fato várias vezes… obrigada por me seguir aqui, querido.

    1. Uma Bíblia – seja ela a mais linda do mundo – não salva ninguém. Só a fé! Sim, hoje dou graças de que tudo tenha vindo da forma que veio… Obrigada, querida!

  2. Agora que sabemos como colocou um ponto final na história com o Saulo, estamos curiosas para saber como terminou o episódio Baía Formosa e que fim levou o Carioca…

  3. Mto bom! Vc foi ajudada por um acidente, fez vc tomar um outro rumo na sua vida! Estou curiosa com o alemão que era teu chefe aqui no Brasil…um beijo na Xerazade

    1. Mary, legal sempre te ver aqui… O meu chefe em São Paulo era suíço, não alemão… e vou contar mais sobre ele no próximo episódio! Não perca, tá? Obrigada por me seguir aqui!

    1. Mas demorei muito! Muito tempo perdido. Era como um desafio: “se ele me amar, então eu tenho valor como mulher, como pessoa”. Quanta burrice…

    1. E arranjou junto com ele. E com a noiva, com a qual acabou casando. Mas… Deus escreve certo por linhas tortas mesmo. Obrigada por me acompanhar aqui, querida!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar:
Cringe
Saiba Mais

Sou Cringe, e daí?

A pergunta que não quer calar: você que nasceu antes do ano 2000, se considera um Cringe? Comente sua resposta ou fica para uma reflexão...