Conversávamos em inglês, morávamos na Suíça, eu brasileira, ele francês. Que mistura! Aquele encontro com Frédéric no Laghetto de Astano foi o primeiro de muitos outros. (“Robert Redford, versão francesa”.) Ele tinha muita história para contar e muitas perguntas a fazer. Seu sotaque francês tinha o poder de tornar seus olhos azuis água-marinha mais lindos ainda. E ele fumava. Muito, sempre brincando com seu isqueiro Zippo – um tique nervoso, talvez?

Caribe

A infância de Frédéric fora sem pai, sem mesmo ter sabido quem era ele. Sua mãe, uma francesa de Lyon, o criou sozinha, trabalhando como garçonete em restaurantes baratos e ganhando nem mesmo o suficiente para sobreviver. Muitas vezes, levava restos de comida dos restaurantes para casa. Frédéric aprendeu que a vida era dura. Acreditava que só poderia ser boa se fosse longe da França, longe daquilo que conhecera quando criança.

Já adolescente, muitas vezes ficava parado em frente às bancas de revistas olhando maravilhado para aquelas fotos de praias paradisíacas, sol, céu azul, mansões, corpos bronzeados e sorrisos felizes. Imaginou que era em um lugar assim que a vida deveria ser boa. Fez, tão logo pode, um aprendizado como cozinheiro e partiu trabalhando num navio, deixando sua mãe desconsolada e sozinha em Lyon. “Mas um dia, mãe, venho te buscar!” Prometeu a ela.

Caribe

Quando o navio aportou em St. Martin, uma pequena ilha situada ao norte de Guadalupe, no Caribe, decidiu ali ficar. Conseguiu rapidamente um emprego na brigada da cozinha de um grande hotel, para logo sentir na pele o constante estresse a que estava exposto, na profissão que havia escolhido. Vivia em conflito entre trabalhar e ir às festas, aos bares, às praias.

Trabalhava e festejava, festejava e trabalhava. Muitas vezes ia dormir com o sol nascendo, ou adormecia na areia da praia nos braços de alguma mulher… Muito álcool, muito trabalho, muito estresse antecederam a maconha, a cocaína. Poucos meses depois, já não conseguia mais trabalhar ou festejar sem ter inalado ao menos uma linha. Viu que o dinheiro que ganhava já não era suficiente para sustentar seus vícios, seu estilo de vida. Endividou-se, roubou, enganou turistas.

Quando se encontrou tentando inalar o que podia daquele pó branquinho que tinha ficado na beirada da privada imunda de uma boate, levando seu nariz e sua boca a tocar restos de fezes e urina alheia, decidiu mudar de vida. Entendeu que não havia encontrado a vida perfeita das fotos coloridas das revistas, mas sim o fundo do poço! Já não era dono de seus atos. Lembrou-se da promessa feita à sua mãe, de tirá-la da miséria em que vivia em Lyon. E decidiu fugir das tentações daquele mundo de ilusões, onde todos encenavam felicidade total.

Logo na manhã seguinte, pediu um adiantamento de salário ao chefe do restaurante e, na surdina, partiu para o aeroporto levando só uma pequena valise de mão, muitos pertences não tinha. Entrou no primeiro avião rumo à França. Lá chegando, foi ao encontro de sua mãe, que o vendo naquele estado lastimável, logo o encaminhou para uma clínica de recuperação, onde ficou internado por três meses.

Lá percebeu que que deveria evitar lugares onde a droga pertencia ao dia a dia, para evitar cair novamente em tentação. Estudou os jornais de gastronomia e decidiu candidatar-se à uma vaga na cozinha de um hotel em Cademario, minúsculo povoado vizinho a Astano. Sentia-se curado do vício, estava cuidando do corpo e da alma, lendo muito, fazendo novos amigos e… Indo ao Laghetto tomar sol junto comigo.

Caribe

As tardes à beira do lago tornaram-se curtas, longas eram nossas conversas. Frédéric queria saber tudo sobre o Brasil, sobre Baía Formosa, sentia falta do jeito latino de ser, da música, do sol forte. Passamos a ir jantar juntos, sempre que podíamos. Numa daquelas noites de longo papo e várias taças de vinho, acabou dormindo no meu quarto, pois perdera o último ônibus com destino à Cademario. Ficou então claro que éramos um par. Ficou claro que queríamos estar juntos, sempre.

E o Carioca? Meu coração já não batia forte ao receber suas cartas, que ficavam cada vez mais raras e cujo conteúdo me deixava cada vez mais desapontada e triste com sua conduta. Ele havia vendido todos os meus quadros, que significavam tanto para mim, aqueles que tinham cruzado o oceano da Alemanha ao Brasil no navio cargueiro de anos atrás (“Bananas a todo vapor!”). Provavelmente havia comprado maconha com o montante angariado.

Com o apoio moral de Frédéric ao meu lado na cabine telefônica de Astano, disse ao Carioca que não voltaria mais para Baía Formosa, pedi que ele enviasse meus pertences para a casa da minha mãe em São Paulo. Carioca ficou furioso do outro lado da linha, para minutos depois começar a chorar e pedir que desse uma chance ao nosso amor. Implorava para que eu voltasse. Que não iria mandar nada para lugar nenhum, que eu deveria ir buscar minhas coisas pessoalmente, caso as quisesse de volta.

O tempo passava rápido. Os raios de sol do verão já não aqueciam tanto e nossos encontros no lago ficaram mais raros, passávamos a maior parte do tempo juntos no meu quarto. Novembro se aproximando e com ele chegaria ao final nossos contratos de trabalho, pois os hotéis da região ficavam fechados durante os meses frios do ano. Novos planos deveriam ser feitos. O que fazer no inverno? Frédéric e eu queríamos ficar juntos. Ele me amava e sentia-se seguro ao meu lado. Eu o amava e via nele o homem que sempre sonhei ter: sensível, inteligente, lindo.

Frédéric propôs um plano que me pareceu perfeito: iríamos, os dois, para a ilha de São Bartolomeu, no Caribe. Eu iria primeiro para o Brasil, colocar um fim na minha relação com Carioca. Precisava tentar salvar o resto que havia sobrado dos meus pertences, principalmente meus livros e minhas fotos, tanto havia fotografado nos últimos anos! Frédéric iria da Suíça direto para São Bartolomeu e eu iria ao seu encontro, logo que pudesse. Neste interim, ele providenciaria moradia para nós dois e, na melhor das hipóteses, um emprego para que eu começasse a trabalhar logo que lá chegasse.

Eis que chegara o dia da despedida! Longos beijos, abraços apertados e a certeza de que pertencíamos um ao outro. Lembro-me ainda de ficar parada, na porta do hotel, vendo sua imagem ficar cada vez menor rua afora. Seu cabelo dourado, a calca jeans moldando o perfeito bumbum rebolando de um lado para outro, a jaqueta de couro, a bota cowboy e o isqueiro Zippo rolando entre seus dedos… Meu coração apertado.

Também chegara o dia de despedir-me de Alberto, o dono do hotel em Astano e, para minha surpresa, Alberto me fez uma proposta irrecusável: que eu voltasse no ano seguinte, não como ajudante, mas sim como maitre no restaurante! O salário seria quase o dobro do que havia ganho naquele ano e a tarefa muito mais interessante.

Mas… e meus planos com Frédéric? Tive que pensar, e pensar muito. Talvez… tentar convencer Frédéric a voltar no verão seguinte para a Suíça?

Ah! Acho que agora te deixei com curiosidade. E vou ter que parar por aqui, pois, imagine você, já se passaram os seus cinco minutos de leitura. Mas você pode voltar aqui na minha coluna, se quiser saber o que aconteceu. Vai se impressionar como a vida às vezes resolve por si só nossos dilemas. E foi assim que aprendi a não me preocupar demasiadamente com eles.

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